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Cansados de blogs bem comportados feitos por gente simples, amante da natureza e blá,blá,blá, decidimos parir este blog do non sense.Excluíremos sempre a grosseria e a calúnia, o calão a preceito, o picante serão ingredientes da criatividade. O resto... é um regalo
09/06/2022
ALBERTO MATOS
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Inflação século XXI– a lebre e o caçador
A causa da inflação não está nos salários mas sim no aumento do preço de matérias-primas e de outros fatores de produção e, claro, na especulação financeira que se aproveita da conjuntura. Nesta corrida, os salários são a lebre e o capital o caçador.
O monstro está de volta, ao fim de quase três décadas. Os números não enganam: a inflação chegou aos 8% em Maio, o valor mais alto dos últimos 29 anos, destacando-se a subida de 27,2% nos preços da energia e de 11,7% nos produtos alimentares. Não é preciso ser analista económico para perceber que em breve a inflação se vai instalar na casa dos dois dígitos.
Desde os anos 90 do século passado que a inflação não atingia estes valores, ao ponto de quase ter caído no esquecimento de gerações que a sentiram na carne nos anos 70 e 80. Uma espécie de “milagre do euro” tomou conta do inconsciente coletivo, um sonho do qual não convinha acordar para não despertar os velhos fantasmas da inflação, da carestia de vida ou da desvalorização da moeda, boa para as exportações mas péssima para o nível de vida de quem vive apenas do seu trabalho.
Este “milagre” continha uma profunda ilusão. A conversão de escudos para euros não teria de provocar um aumento geral dos preços, mas a mudança para a “moeda forte” foi aproveitada para a especulação e o lucro fácil. Basta lembrar o preço de produtos como um café que em 2001 custava entre 50 e 60 escudos e rapidamente atingiu os 50 cêntimos – um aumento a rondar os 100%. Basta lembrar o peso simbólico e até real duma nota de 1000 escudos (um conto) que passou a valer 5 euros e hoje mal dá para um maço de tabaco…
A inflação oficial nunca traduziu esta realidade do nosso bolso, fixando-se em valores que raramente ultrapassavam 1% ao ano e chegaram perto de zero, até recentemente com taxas de juros negativas. A pouco e pouco, fomos percebendo que a estabilidade de preços com uma moeda forte, numa economia débil e dependente como a portuguesa, era acompanhada de taxas de crescimento próximas do zero. A estagnação salarial tornou-se uma realidade e as velhas lutas por aumentos salariais que anualmente provocavam um “inverno quente” caíram em desuso.
Na crise financeira de 2008 começámos a despertar do sonho. Para salvar bancos privados (BPN, BPP, BANIF, BES, Montepio…) pagámos com língua de palmo nos anos da “troika” e a própria CGD, chamada a tapar os “buracos negros”, hoje trata os clientes com critérios de um qualquer banco privado.
Nos anos da “geringonça” o salário mínimo subiu, fruto da pressão política à esquerda, mas a debilidade da contratação coletiva aproximou o salário médio do mínimo – sem falar já dos recibos verdes, essa “utopia liberal” que quer transformar toda a gente em “patrão de si mesmo” e acaba num inferno de precariedade para centenas de milhares de trabalhadores.
Aqui chegados, temos dos salários mais baixos da Europa e aí está de novo a inflação, não um fantasma do passado, mas uma realidade nua e crua. E não vale a pena dizer que é um fenómeno transitório – a pandemia e a guerra na Ucrânia não explicam tudo nem têm um fim à vista. Em 1973, em plena crise petrolífera, Marcelo Caetano tentou vender a ilusão de que a “era das vacas magras” era um simples intervalo, mas o seu governo não durou sequer um ano e a inflação entrou em espiral pelo menos até 1985, com duas visitas do FMI pelo meio.
Hoje, temos inflação a par de um crescimento anémico da economia – combinação nada virtuosa a que os economistas chamam estagflação. As confederações patronais e o governo tentam convencer-nos de que para travar a inflação é preciso congelar os salários – o OE agora aprovado pela maioria absoluta PS impõe um aumento de 0,9% à função pública que não é congelamento, é pura perda salarial. A causa da inflação não está nos salários mas sim no aumento do preço de matérias-primas e de outros fatores de produção e, claro, na especulação financeira que se aproveita da conjuntura. Nesta corrida, os salários são a lebre e o capital o caçador. E é batota gritar: “Olha a lebre a perseguir o meu cãozinho…”
É tempo de voltar às “velhas” lutas salariais!
* Dirigente do Bloco de Esquerda
IN "RÁDIO PAX" - 2022.