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Lulu Landwehr 2
Sonhava diariamente atirar-se contra o arame electrificado e acabar de vez com aquilo, mas a irmã, a quem deve a vida, não deixava
Como
é que se transmite a outrem uma experiência absolutamente vedada,
selada, inacessível, física e psiquicamente? Tinha ela 15 anos, os
húngaros ocuparam a região da Transilvânia onde nascera; de 40 a 44
introduziram numerus clausus para judeus na sua escola; no primeiro dia
de Maio de 44, o seu bairro, incluindo a casa de duas assoalhadas da
família, ficou circunscrito como gueto. Aos 19, foi para Auschwitz.
Ficou lá três meses, mas disse-me várias vezes que um segundo ali teria
bastado para várias vidas. Depois para Fallersleben, onde trabalhava 12
horas por dia para produzir os mísseis V-2.
Foi libertada em Salzwedel. Pedi-lhe para gravarmos o que me contava
em primeira mão. Durante quase 50 anos, calara--se, como tantos
sobreviventes. Era preciso rasurar para viver, disse Primo Levi. Mas
mesmo com o silêncio, aquilo voltava como suplício, de todas as formas e
feitios, à noite, em pesadelos de alguém a persegui-la e aos seus, a
cada vez que foi mãe, depois avó, a cada vez que a sua sensibilidade
tacteava o anti-semitismo.
Vinte anos passados sobre o que ela me contou, o que mais retenho é a
devastação que a recordação envolvia. Ficava totalmente alquebrada.
Precisava de horas para articular quatro ou cinco frases, frequentemente
a voz extinguia-se até ao dia seguinte.
Sonhava diariamente atirar-se contra o arame electrificado e acabar
de vez com aquilo, mas a irmã, a quem deve a vida, não deixava. Duci
(petit nom de Magdalena) era a lutadora, foi ela que roubou o resto do
repolho do caixote de lixo da cozinha e se arriscava a pagar com a vida
as migalhas extra, essenciais à sobrevivência. Tinham-se uma à outra,
uma excepção só possível por serem fisicamente muito diferentes; os
pais, uma irmã e um sobrinho tinham morrido à chegada. Não as
aterrorizava morrer, mas que uma partisse e a outra ficasse. Tomaram a
decisão de que sobreviveriam ou morreriam juntas, só isso permanecia em
sua posse.
Na abundância, o que não se esquece! Estragamo-nos com ela, pois
envolve sempre desperdício. E é como se os bens mais preciosos perdessem
frescura, começassem a apodrecer. Esquecemo-nos de tudo. O valor de um
paninho do tamanho de um pano de limpar os óculos. O valor de ter a
barriga cheia, a sede saciada, uma noite bem dormida, o calor entranhado
no corpo. O valor da paz e da amizade. Esse bolo de anos que elas
fizeram, em frente das SS, com a ração da fatia diária de pão, poupada
ao longo de uma semana à custa de fome, a fim de empilharem as fatias,
verem erguer o bolo e, depois, cantarem os parabéns à amiga, no seu dia
de anos.
Já sabemos tudo, já ouvimos tudo? No dia em que os americanos
libertaram o seu campo – em breve se perfazem 70 anos: foi a 14 de Maio
de 1945 --, não houve qualquer euforia. Os aviões eram pássaros de prata
num céu azul. Abriram-lhes os portões, viram os alemães fugirem ou
entregarem-se, ouviram o ribombar dos canhões. Não se pode regressar,
subitamente, à vida. Se algum pensamento ou emoção os rondava, era ainda
o medo, o pânico: e agora, o que vai ser de nós? Para onde vamos?
Fizemos as gravações em muitos sítios, em passeios no Paredão, em
Paris, mas sobretudo na sua casa, em Lisboa, da Rua da Quintinha. Onde
eu a visitava quase todos os dias, a seguir ao trabalho. Era um
apartamento moderno, pequeno e confortável. Algum do mobiliário era
proveniente da companhia Mainline, que ela fundara com o marido em
Brasília. Havia as esculturas em ferro da Vivi, a filha, e o quadro de
um tucano pintado a óleo, também por ela. A Lulu gostava da cor branca,
espalhada por sofás, tapetes, gatos, e até o seu cabelo louro era quase
branco. No aparador tinha candelabros com velas que acendia com
frequência. E existia um terraço com vista alta sobre o Tejo, o céu, o
rio e a luz branca de Lisboa. Muitas vezes abria--me a porta descalça,
dando um pé de dança, a música brasileira enchendo o apartamento. Levou
anos até conseguir apreciar a alegria e ligeireza do Carnaval
brasileiro, contava.
Os gatos quase albinos, com os narizes rosados, eram silenciosos.
Trepavam-lhe pelas costas acima, subiam--lhe para os ombros, desciam-lhe
para o colo, deixavam-na, sem uma queixa, seriamente arranhada. Muitas
vezes traziam as marcas do seu batom no pêlo. Teve vários. Tinham
autorização para trepar para todo o sítio, abstinha-se de proibir-lhes
os movimentos e ficou sempre com remorsos de ter esterilizado a Mitzi
fufi, a primeira de que me lembro. Era tímida e enfiava-se dentro do
roupeiro do quarto mal assomavam as frequentes visitas. A Lulu estava
sempre a convidar pessoas para comer ou jogar brídege, tinha a casa
cheia aos fins-de-semana, enchia o aparador com comida com um toque mais
húngaro que brasileiro e havia, em particular, aqueles bolinhos
maravilhosos, pequenos, de uma massa que ela tendia, cortava como
envelopes e enrolava com recheio de compota de framboesa. Comiam--se
quentes, saídos do forno, e polvilhados com açúcar branco.
“Sou uma cidadã do mundo”, dizia, uma judia da diáspora, da
dispersão, traduzia ela. Queria pertencer à diáspora. Não sai mais do
Brasil, mas sairia se pudesse, porque a Europa lhe faz falta. No próximo
dia 23 de Maio, a Lulu faz 90 anos. Disse-me uma vez que, com a sua
morte, o mundo vai perder alguma graça. Acredito que sim.
Escritora, a viver em Londres
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13/03/15
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