QUANDO TUDO ACONTECEU...
1920: Nasce em Lisboa no Bairro de Alcântara a 1 de Julho (data escolhida por Amália porque nos registos consta o dia 23). - 1929: Entra na Escola Oficial da Tapada da Ajuda, onde terminará a instrução primária. - 1934: Trabalha como bordadeira, engomadeira e tarefeira. - 1935: Desfila na Marcha de Alcântara e canta pela primeira vez, acompanhada à guitarra, numa festa de beneficência. - 1938: Representando o Bairro de Alcântara participa no Concurso da Primavera. - 1939: Estreia-se como fadista no Retiro da Severa. - 1944: A estada no Brasil, prevista para seis semanas, estende-se por três meses. Actua no Casino de Copacabana. - 1945: No Brasil grava os primeiros dos 170 discos (em 78 rotações) da sua carreira. - 1947: É protagonista no filme «Capas Negras», batendo todos os recordes de exibição ( 22 semanas em cartaz no Cinema Condes). - 1948: Recebe o prémio do SNI (Secretariado Nacional de Informação) para a melhor actriz, pelo seu papel em «Fado», filme de Perdigão Queiroga. - 1949: Actua pela primeira vez em Paris e Londres. - 1951: Digressão a África: Moçambique, Angola e Congo. - 1952: Actua pela primeira vez em Nova Iorque no La Vie en Rose, ficando 4 meses em cartaz. Assina contrato com a editora discográfica Valentim de Carvalho, que passa a gravar todos os seus discos. - 1953: É a primeira artista portuguesa a cantar na televisão americana no programa «Eddie Fisher Show». - 1954: Edita o primeiro LP nos Estados Unidos. Actua no Mocambo, em Hollywood. - 1955: Interpreta a «Canção do Mar» e o «Barco Negro» no filme de Henri Verneuil «Os Amantes do Tejo». Filma no México «Música de Sempre» com Edith Piaf. - 1957: Estreia-se no Olympia em Paris e começa a cantar em francês. Charles Aznavour escreve para ela «Ai, Mourrir pour Toi». - 1961: Casa no Rio de Janeiro com o engenheiro César Seabra com quem vive até à morte deste em 1997. - 1962: Lança o disco «Asas Fechadas» e «Povo que Lavas no Rio» do poeta Pedro Homem de Mello. - 1966: Actua no Lincoln Center (Nova Iorque) com uma orquestra sinfónica dirigida pelo maestro André Kostelanetz. - 1967: Recebe em Cannes, pela mãos do actor Anthony Quinn, o prémio MIDEM (Disco de Ouro) para o artista que mais discos vende no seu país, facto que se repete nos dois anos seguintes, proeza só igualada pelos Beatles. - 1970: Actua em Tóquio, Nova Iorque e Roma e recebe uma alta condecoração francesa.
- 1975: Regressa ao Olympia em Paris. - 1976: É editado pela UNESCO o disco «Le Cadeau de la Vie» em que figura ao lado de Maria Callas e de Jonhn Lennon. - 1977: Canta no Carnegie Hall de Nova Iorque. - 1985: Volta a cantar no Olympia de Paris. Dá o primeiro concerto a solo no Coliseu dos Recreios de Lisboa. - 1989: Comemora os 50 anos de carreira com uma exposição no Museu do Teatro em Lisboa. - 1990: Dois grande espectáculos: Coliseu dos Recreios e no S. Carlos onde, pela primeira vez em 200 anos, se ouve cantar o fado. - 1994: Actua pela última vez em público no âmbito de Lisboa, Capital da Cultura. - 1995: É operada a um tumor no pulmão. Edita o seu último disco «Pela Primeira Vez». - 1998: É lançado o disco O melhor de Amália, muito aclamado pela crítica internacional. É homenageada na Expo 98. - 1999: A 6 de Outubro morre em Lisboa, na sua casa na Rua de S. Bento.
PORTUGAL: RURAL, POBRE E ATRASADO
No princípio do século XX Portugal tem cinco milhões de habitantes.
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Rua do Cais de Santarém - (1907) Foto de Joshua Benoliel ( Já em tempo mais pacifico, inicio do século XX, no "CHAFARIZ DE EL-REI" crianças aguardando a sua vez para encher as suas bilhas) in ILLUSTRAÇÃO PORTUGUESA de 25.03.1907 |
É um país essencialmente rural, pobre e atrasado. Quarenta mil portugueses emigram por ano. A taxa de analfabetismo ronda os 70%. A 5 de Outubro de 1910 Portugal torna-se numa das primeiras repúblicas da Europa. O novo regime mobiliza o país e apaixona a opinião pública. Escolas e educação, prioridade. A legislação consagra os novos direitos de liberdade e cidadania. A prática do exercício desses direitos engendra grandes contradições. Comportamentos restritivos e repressivos da parte do Partido Republicano no poder.
Portugal participa na I Guerra Mundial (1914 -1918). Agravamento das tensões dentro da sociedade portuguesa estão na origem da Ditadura de Sidónio Pais. Em 1917 Portugal sofre o desastre da batalha de La Lys, em França. Agudizam-se as tensões entre a sociedade urbana, em vias de industrialização e o mundo rural tradicional e arcaico. Em Fátima, três miúdos afirmam ter visto Nossa Senhora em cima de uma oliveira. Em Lisboa, na Estação do Rossio, Sidónio Pais é assassinado a 14 de Dezembro de 1918. Bento Gonçalves, dirigente anarco-sindicalista, visita a Rússia durante a revolução bolchevista. Em 1921 fundará do Partido Comunista
Em 1920 a Igreja recusa a imagem de Nossa Senhora de Fátima do escultor Teixeira Lopes pela sua sensualidade. Nas faldas da Serra da Gardunha, um tocador de cornetim é cobiçado pelas duas bandas do Fundão: «música nova» e «música velha». A vida de músico é insegura, ele tem que assegurar o sustento dos quatro filhos e da mulher novamente grávida. É sapateiro, mas por causa do cornetim, poucos sapatos fizera. Sai dos confins da Beira Interior e resolve tentar a sorte na capital. É o tempo das cerejas (Maio e Junho) e em Lisboa, na Rua Martim Vaz, a mulher dá à luz uma criança do sexo feminino: Amália da Piedade Rodrigues. A vida está má e o sapateiro-músico não arranja trabalho. Voltam todos para o Fundão mais pobres do que nunca. Excepto Amália que, com 14 meses, fica em Lisboa com os avós.
«CANTA ESSA, CANTA ESSA QUE JÁ PARARAM SEIS...»
Amália é a quinta filha de uma prole de nove irmãos.
Vicente e Filipe, os mais velhos. A mortalidade infantil é grande e a pneumónica alastra: José e António, ainda meninos, morrem. Depois de Amália nasceram mais quatro meninas: Celeste, mais nova dois anos; Aninhas que morre aos dezasseis anos; Maria da Glória que logo morre e por fim, Maria Odete.
3 de Dezembro de 1923. Em Manhattan, bairro de Nova Iorque, nasce Maria Callas, filha de emigrantes gregos. Amália não tem brinquedos, mas sabe duas ou três cantigas. Os vizinhos pedem-lhe que cante e enchem-lhe as algibeiras do bibe com rebuçados e moedas. Duas meninas que irão pôr em causa o que há muito está estabelecido. Duas vozes singulares, dois marcos entre o «antes» e o «depois»: uma sê-lo-á na interpretação da Ópera; outra na interpretação do Fado. Enfim, duas renovadoras.
Golpe militar de 28 de Maio de 1926. A República parlamentar, derrubada. O novo regime começa por limitar a liberdade de expressão e associação – a censura! Ilegalização progressiva de partidos e sindicatos. Ascensão de Salazar - de ministro das Finanças a Presidente do Conselho. Amália é uma rapariguita tímida. A única pessoa que consegue que ela cante é o avô. Amália dentro de casa, sem ser vista, canta tangos de Carlos Gardel e muitas outras coisas. Sentado à janela o avô conta as pessoas que param para a ouvir: «Canta essa, canta essa que já pararam seis».
Amália tem quase nove anos e a avó, analfabeta, manda-a para a escola da Câmara, na Tapada da Ajuda. No caminho come figos de piteira e rouba florinhas para levar à professora. Gosta tanto da escola que nada a impede de ir, nem mesmo a sua bronquite asmática. Em casa é que não quer ficar! Adora a escola onde o tempo é dela e da sua fantasia. Ali ninguém a manda limpar o pó, nem lavar a loiça ou esfregar o chão.
Aprende as lições de ouvido e chamam-lhe «sabichona». Mas uma coisa não lhe entra na cabeça: Geografia! A professora insiste para que ela compre o livro – o seu primeiro livro. Quando mais tarde é obrigada a comprar outro, a avó perguntar-lhe á: «Aquele ainda está novo, para que queres outro?».
Na escola da Câmara é obrigatória a bata branca por cima do vestido. Lá vai Amália a caminho da escola e, por entre o arvoredo, o cântico dos pássaros dilata o espaço. Encontra uma rapariga toda rota, ainda mais pobre do que ela. Tira o vestido que traz por baixo da bata e dá-lho. Quando chega a casa, a avó diz-lhe para tirar a bata para lavar. Finge um ar admirado e atrapalhada diz: «Ai! Perdi o vestido!». «Olha a fidalga, a dar vestidos!» exclama a avó entre tabefes.
Faz o exame de instrução primária e, como todas as meninas, leva o seu vestido novo que lhe fica muito bem. É de crepe-da-china azul turquesa às pregas, feito pela primeira vez numa modista. Depois do exame nunca mais o há-de vestir porque ficará a aguardar uma outra ocasião importante… Entretanto cresce. Tem doze anos e para ela a escola acabou!
Como é hábito da gente pobre, grandes e pequenos contribuem para o sustento da casa. Aprender um ofício, impõe-se. Ofício de bordadeira, escolhe. Ganha dois escudos por dia. O dinheiro não chega para o bilhete do eléctrico. De manhã cedo galga ruas e ruelas a pé, da Ajuda às Escadinhas do Duque, perto do Chiado. Dias e meses a passar a ferro... Bordar? Nicles! Como nada aprende, a avó não quer que ela continue. Uma tia é encarregada numa fábrica de bolos e rebuçados, na Pampulha. Embrulham-se rebuçados, descascam-se marmelos e outras frutas. É preciso gente. Amália ganha agora seis escudos por dia e quanto mais descascar e embrulhar, mais ganha.
«NUNCA NOS REVOLTÁMOS COM A VIDA»
Tem 14 anos feitos. Resolve ir viver com os pais e irmãos que regressaram a Lisboa. Em casa da avó as coisas eram organizadas. Passa a viver numa confusão maior. Casa pequena para tanta gente, um casal e os seus cinco filhos.
É preciso disciplina. Como é costume das gentes da Beira Baixa, as hierarquias são para se respeitar. O irmão mais velho é que quem manda, é quem bate. Bastantes bofetadas apanha por cantar na rua - ela que tanto gosta de cantar. As raparigas nada podem fazer sem a sua autorização. Amália ,como filha mais velha, tem que ajudar a mãe na lida da casa. Passa as calças e as camisas dos irmãos, tira nódoas dos fatos domingueiros. Todos os dias leva o almoço aos irmãos à tasca o “77” em Alcântara, onde eles só consomem vinho para poderem usar as mesas.
A avó, uma mulher áspera que dera à luz 16 filhos, tem agora vários netos. Junta a família toda aos Domingos. Cada um leva qualquer coisa para o almoço e jantar. Bem dispostos, os mais velhos cantam coisas da terra, cantigas da Beira Baixa. Os mais novos o fado.
O fado tem pouco mais de um século. É uma manifestação urbana dos bairros populares e operários de Lisboa. Com o advento da Rádio e do disco, as vozes das fadistas Ercília Costa, Ermelinda Vitória, entre outros, chegam directamente a um público mais vasto.
No Cais da Rocha a mãe monta uma pequena banca de fruta. Amália deixa a fábrica da Pampulha para ajudar a mãe. No meio do burburinho geral, do colorido das frutas e das hortaliças, ecoam os pregões - pequenas melodias ancestrais - memorial rural das gentes da Beira Baixa, Trás-os-Montes, Minho.
Tão pobres são que o seu grau de pobreza é para eles coisa natural. Ninguém se lamenta. É o fado da gente pobre. Se está frio, à braseira ficam. Se chove em casa, alguidares, tachos e panelas no chão espalhados, apanham a chuva. Se estão a dormir e a água cai, um último recurso é fugir para o lado, «e dentro do cobertor saltava ainda uma pulga!» - escreve nas suas memórias a própria Amália: «Mas nunca nos revoltámos com a vida. Com certeza, que havia pessoas diferentes de nós, senão não havia revoluções. Mas nuca ouvi sequer falar dessas coisas. Os privilegiados é que falam dessas coisas, não são os pobres. E no fundo entre os pobres também há diferenças de classe. Éramos gente à margem».
Aos sábados descobre o cinema nas reprises do Alcântara, que apresenta filmes muito depois de terem sido estreados nas principais salas de Lisboa. Vê a Dama das Camélias com a Greta Garbo (Camile 1937). Bebe vinagre e põe-se nas correntes de ar, para ficar tuberculosa como a sua heroína. Ser artista é o seu grande desejo. Tem dezasseis anos e a sua inseparável irmã Celeste catorze. Resolvem fugir num barco, clandestinas, mas vestidas de homens, para ninguém se meter com elas. Vestem os fatos dos irmãos. São seis da manhã…passado meia hora já estão novamente em casa.
Em 1938 representa o Bairro de Alcântara, onde vive, no Concurso da Primavera em que se disputa o título de Rainha do Fado. Canta aqui e ali, cantigas tradicionais e danças rurais, do vira ao malhão, bem como as marchas populares nas festas dos santos populares de Lisboa, organizadas pelas colectividades de Cultura e Recreio com cujo espírito se identificará sempre. Conhece o guitarrista e torneiro mecânico Francisco Cruz por quem se apaixona. Tenta o suicídio por desgosto de amor.
«PORQUE O FADO NÃO SE CANTA, ACONTECE»
Guernica é bombardeada. Península Ibérica, ditadura. Em Portugal, Salazar continua. Em Espanha, Franco começa. Hitler, a Polónia invade. O Estado Novo cria a carteira profissional de fadista, sem a qual os fadistas não se podem apresentar em público. O fado salta das ruas e vielas de Lisboa, dos retiros e casas de pasto tradicional para as chamadas «casas de fado» como o Solar da Alegria, o Retiro da Severa, o Luso destinado a um público sofisticado e burguês, com poder de compra.
É precisamente numa desta casas, o Retiro da Severa, que em 1939 Amália faz a sua estreia profissional. No ano seguinte actua no Solar da Alegria, como artista exclusiva com repertório próprio. Estreia-se no Teatro Maria Vitória, na revista «Ora vai tu» personificando a fadista vestida com xaile negro. Casa-se com Francisco Cruz, o torneiro mecânico e guitarrista amador.
A jovem Amália impressiona todos. Canta com intensidade dramática o fado porque «o que interessa é sentir o fado. Porque o fado não se canta, acontece. O fado sente-se, não se compreende, nem se explica».
Durante os anos de guerra uma parte da burguesia lisboeta vive os anos loucos. Os intelectuais, indignam-se. Democratas tomam partido dos que na Europa combatem a besta nazi. Salazar, vacilante. Espiões de ambos os lados - aliados e nazis – disputam as noites lisboetas, nos cabarés e nas casas de Fado.
Divorciada a seu pedido, Amália tem 23 anos. É independente, jovem e divertida. Ganha bem e sente-se bem em Lisboa. A vida é uma festa. Restaurantes, boites, espanholas e refugiados, cruzam-se. Quando canta ao público agrada. Canta tudo o que está na berra. Dança tudo o que está na moda: passodobles, tangos, sambas, valsas. Todos lhe fazem a corte. Leva o público das casas de fado atrás dela, de um lado para o outro, do Negresco para o Tokai, para o Nina.
Em 1943 estreia-se com grande sucesso no estrangeiro em Madrid, a convite do embaixador português. Começa o seu sucesso internacional. Em 1944 está no Brasil. Delírio! A sua estada, prevista para seis semanas, estende-se por três meses e grava, em 78 rotações, os seus primeiros discos.
Em 1945 o nazismo, derrotado. A oposição ao ditador Salazar, transgride. Reuniões, manifestos, abaixo-assinados. Surge o Movimento de Unidade Democrática. Lopes-Graça e os poetas Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira, João José Cochofel (entre outros) fazem as «Heróicas» para serem cantadas nas ruas de Lisboa. A grande ilusão…
Em 1949 António Ferro é uma espécie de ministro de Salazar para a cultura. Tem o apoio artístico do sector modernista nacionalista, entre os quais se destaca Almada Negreiros. Amália já fizera grande sucesso no Brasil e em Madrid. Os seus discos são vendidos em 16 países. Pela primeira vez vai a Londres e a Paris a convite de António Ferro, que considera Amália uma grande artista e mulher inteligente. Sempre que é necessário abrilhantar as recepções governamentais pede-lhe que esteja presente para cantar e encantar: «Achava que eu era melhor toalha que tinham em casa mas nunca me ajudou a ser a Amália Rodrigues». Nunca ninguém do governo a elogiou. A única pessoa que sempre a tratou com respeito foi realmente o António Ferro. Salazar sempre que a ela se referia, chamava-lhe a criaturinha .
«Sociedade repressiva, mesquinha e tacanha!» clamam os da Oposição. As tertúlias nos cafés de Lisboa são o reduto da desobediência. A irreverência e a laracha são as grandes formas de exprimir a opinião sem rodeios sobre os estado de coisas em Portugal. Neo-realista e surrealistas confrontam-se ideologicamente. Em 1953 os surrealistas portugueses, tendo à cabeça o poeta Mário Cesariny, publicam o manifesto A Afixação Proibida. Os então neo-realistas Manuel da Fonseca e Carlos de Oliveira publicam respectivamente O Fogo e as Cinzas e Uma abelha na chuva.
«PODIA TER SIDO MUITA COISA
SE NÃO FOSSE AQUILO QUE SOU»
Em 1950 organizam-se vários espectáculos de apoio ao programa económico para restaurar uma Europa em ruínas. É o célebre plano Marshall. Na cidade martirizada de Berlim, os primeiros espectáculos. Participam todos os países que aderiram a este plano americano. A escolha recai sobre cantores de música clássica, mas Portugal não tem cantores líricos de nomeada. Amália é a única artista portuguesa conhecida: «Como ouviram alguns discos meus preferiram escolher-me». Canta os poetas portugueses Pedro Homem de Mello e David Mourão Ferreira. A Irlanda, país onde a música popular tem fortes raízes, é também representada por cantores ligeiros.
Em Roma Amália quebra um tabu. Canta no Argentina, um teatro de Ópera. Neste espectáculo participa a cantora lírica Maria Caniglia, o violinista Jacques Thibault e o tenor Fiorenzo Tasso, acompanhados por uma orquestra sinfónica. O contraste é grande. Amália é a única cantora ligeira. Treme como varas verdes. Está sozinha com a guitarra portuguesa de Raul Nery e a viola de Santos Moreira: «Três gatos pingados que não sabiam nada de música a tocarem ao pé de uma orquestra sinfónica, enorme!». Quando entra no palco tem uma tal cara de medo, que nas primeiras filas pessoas olham-na com ternura: «Acho que tive o público comigo, ainda antes de começar».
O sucesso é grande. Sai do palco, começa a rir e a chorar ao mesmo tempo. «Tive o único chilique da minha vida. Era tudo no palco com leques, à minha roda, a dizerem. Perchè píangere? Un sucesso! Un trionfo! Perchè píangere? E eu ao mesmo tempo chorava, ria, ria. Foi um tal medo…porque os fadistas dantes tinham muito mais complexos de inferioridade do que agora. Eu é que tirei os complexos ao fado. Nessa noite, sem querer, consegui muito. Foi um espectáculo extraordinário para mim, porque as críticas foram formidáveis. À saída, toda a gente estava à minha espera, a gritar: Brava!Brava!Brava!»
Numa da sua estadas em Nova Iorque, Danny Kaye convida-a para entrar num espectáculo com ele na Broadway: «Quem sabe, se eu tivesse ido, correndo-me bem as coisas, como sempre me correram em toda a parte, talvez eu tivesse partido dali para uma coisa importante. Eu podia ter sido muita coisa se não fosse aquilo que sou. Mas nesta altura não era capaz de cantar ao lado de Kaye, embora tivéssemos ficado grandes amigos».
Em 1954 faz uma digressão pelo México. Uma jornalista famosa de Hollywood, Hedda Hopper quer que ela se vista de branco, que se decote e renuncie ao xaile preto. Quer que Amália ponha uma rosa vermelha na cabeça. Amália explica-lhe que a rosa no cabelo é para a Espanha e ela é de Portugal, de Lisboa.
O seu empresário americano, Blackstone leva-a aos estúdios de Hollywood. Assiste às filmagens de “Someone At Last”, em que Judy Garland e James Mason são os protagonistas. Acha tudo muito estranho porque uma das cenas é repetida dezassete vezes, enquanto em Portugal um actor nem sequer uma vez pode enganar-se, porque não há filme suficiente para repetir a cena. Conhece assim James Mason: «Uma portuguesa que ia comigo é que ficou a amarinhar pelas árvores por ter visto James Mason. Até pedi desculpa ao homem e disse-lhe que em Portugal não éramos todos assim» conta Amália ao seu biógrafo Victor Pavão dos Santos.
Neste período não fica nos Estados Unidos porque não quer. Em Nova Iorque canta pela primeira vez na televisão (na NBC), no programa do Eddie Fisher «patrocinado pela Coca-Cola, que tive que beber e não gostei nada». Grava um disco de fado e flamenco. Abrem-lhe uma conta no banco para ficar mais tempo e gravar dois álbuns, com canções de Cole Porter, Gershwin, Jerome Kern. Fica muito contente pelo convite, mas não aceita porque está farta da América: «Eu nunca trabalhei na minha vida e para fazer um álbum com canções americanas tinha de ficar ali a ensaiar, a trabalhar. Eu gosto de cantar sem estar a pensar que estou a cantar. Não sei cantar de outra maneira. E bastava-me a preocupação de estar a falar inglês para perder a espontaneidade».
« É uma temperamental. Uma meridional!»- clamam uns. «É a grande intérprete da alma ibérica!» - dizem outros. Quando regressa a Lisboa é novamente convidada a cantar na embaixada portuguesa em Espanha onde «me tornei “flamengueira”. Conheci as melhores gargantas de flamenco!». Canta e sente que o fado e o flamenco têm a mesma autenticidade: «De um e de outro modo, cada um tem a sua verdade». Anos mais tarde, quando grava o disco «Fado de Portugal e Flamenco de Espanha», dá corpo ao seu iberismo.
«TROVA DO VENTO QUE PASSA»
Por uns - compreendida , por outros - apupada, mas a ninguém indiferente. Decide cantar o fado-canção. Encontra uma nova postura de cantar o fado, mais desabrida. Canta com entusiasmo os fados de Frederico Valério, Raul Ferrão e de Frederico de Freitas «com uma estrutura musical mais complexa, com refrão e coplas, por oposição à simplicidade estrófica dos velhos fados castiços». (Rui V. Nery)
Amália dá ao fado um novo fulgor. Canta o repertório tradicional de uma forma diferente «subordinando o ritmo regular da melodia ao sabor da dicção poética, com suspensões inesperadas e acrescenta ornamentos novos, que foi a buscar às cantigas da Beira Baixa», escreve o mesmo musicólogo. Ultrapassa todas as fronteiras e preconceitos culturais. Amália tem a arte de sincretizar o que é urbano e rural, o que é popular e erudito através de uma voz de timbre único, prenhe de emoção sensual e musical.
Os poetas Pedro Homem de Mello e David Mourão Ferreira passam a escrever para ela. Canta os grandes poetas da língua portuguesa, dos trovadores a Camões, de Bocage aos poetas contemporâneos guiada pela sua grande intuição. Conhece o compositor luso-francês Alain Oulmain: «Um dia estava num acampamento e levaram-me Alain Oulmain, que tinha uma música a pensar em mim, o Vagamundo. Fui ouvir e gostei. Seguiram-se outras e fui contra a maré das pessoas que estavam ao pé de mim, que achavam aquilo muito complicado. Os guitarristas de facto, tiveram de aprender aquelas harmonias novas que o Alain trazia, que não tinham nada a ver com o fado porque o fado é pobre em harmonia. O Alain nasceu no Dafundo, nasceu em Portugal, apesar de ser francês. Tem uma sensibilidade grande de artista, foi criado num certo ambiente. Depois, ouviu-me cantar, sentiu que a minha sensibilidade estava muito perto da sua. Dá-me a possibilidade de voar.»
Amália tem um humor marcadamente lisboeta, construído em Alcântara, bairro predominantemente operário onde o humor corrosivo é cultivado quase como uma forma de vida. Brinca com ela própria, com o seu próprio talento. Sobre a sua primeira aparição na televisão portuguesa em 1958 conta ela ao seu biógrafo: «Andou sempre uma mosca à minha volta. Cantou melhor a mosca do que eu. Quando havia lá moscas, e acho que havia sempre, as pessoas disfarçavam. Eu, como havia a mosca, sacudi-a. E depois só se falava na mosca». Perante situações complicadas constrói a sua coragem na capacidade da resposta pronta. Quando alguém lhe fala sobre as condecorações e outras honrarias que recebera durante a ditadura, responde: «Por mim, não me levantava do meu cadeirão. Não passei pela vida, a vida é que passou por mim».
Na década de 60, razões económicas e razões políticas levam os portugueses a emigrarem em massa para os países ricos da Europa. Em Angola rebenta a Guerra Colonial. Movimento estudantil contra a repressão salazarista. Muitos portugueses, opositores ao regime são obrigados ao exílio. Em Argel o poeta-exilado Manuel Alegre recebe uma carta do seu amigo Alain Oulmain pedindo-lhe autorização para Amália interpretar «Trova do vento que passa» poema que era já uma referência para a resistência anti-fascista portuguesa na voz de Adriano Correia de Oliveira. A nova versão surge no disco da Amália «Com que Voz» (1970)
Em 1962 aparece o primeiro disco com músicas de Alain Oulmain e que é muito bem aceite por um público de uma elite cultural. Para alguns não é fado. Os próprios guitarristas quando tocam as coisas de Oulmain, vêem-se à nora. José Nunes dizia sempre: «Vamos às óperas».
A sua grande sensibilidade artística e intuição faz com que o fado Povo que lavas no rio, um poema que Amália escolhe não sabe bem porquê, de Pedro Homem de Mello, tenha uma dimensão política. O mesmo se passa com um antigo fado do Armandinho que se torna num hino aos que se encontram presos em Peniche e que se passou a ser conhecido como o «fado de Peniche». O disco foi proibido. Para Amália quando «o cantei, aquilo era uma tristeza de amor, que é um sentimento muito mais bonito e muito mais dorido que uma ideia revolucionária. Não me passavam pela cabeça prisões.»
Em 1966 está novamente nos Estados Unidos. Canta em salas normalmente vedadas à participação de cantores de música ligeira como no Lincoln Center e no Hollywood Bowl. Recebe um telefonema de Lisboa a dizer que Alain Oulmain foi preso pela PIDE. Amália dá todo o seu apoio ao amigo e tudo faz para que seja liberto e posto na fronteira.
Em 1967 o Papa Paulo VI visita o santuário de Fátima, a irmã Lúcia e condecora o director da PIDE. Fotos, factos, fados…
Amália continua a cantar os poetas esquerda: Ary dos Santos, Manuel Alegre, O’Neill, David Mourão-Ferreira. Em 1968 o ditador Salazar cai da cadeira de lona em que descansava. Incapacitado é substituído pelo professor universitário Marcelo Caetano. A PIDE encerra temporariamente o Instituto superior Técnico. Em 1969 eleições em que concorrem pela primeira vez os movimentos democráticos MDP/CDE e CEUD que representam as duas facções mais importantes dos opositores ao regime. Fraude eleitoral. Deputados da chamada Ala Liberal são eleitos para a nova Assembleia Nacional. Onda de greves em todo o país. Em 1969 Amália é condecorada por Marcelo Caetano na Exposição Mundial de Bruxelas. Início de uma grande digressão à antiga União Soviética. Mais uma vez a sua voz peculiar, deslumbra.
Amália nunca fica maravilhada com o que lhe acontece. É sempre igual a si mesma. Terá sempre uma atitude displicente em relação aos seus êxitos e ao seu talento. Nunca guardará nada relacionada com a sua carreira artística: «Passei a minha vida a surpreender-me com o que me aconteceu, mas nunca lutei, como nunca sofri para conseguir fazer alguma coisa, para o que se chama vencer, talvez não tenha gozado bem as coisas por que passei. Embora saiba que a única artista portuguesa conhecida no estrangeiro seja eu».
1971: Zeca Afonso grava para a editora Arnaldo Trindade o disco Cantigas de Maio que inclui Grândola, Vila Morena. Em Paris Amália visita Alain Oulmain e conhece pessoalmente Manuel Alegre que, convalescente de uma doença, encontra-se escondido em casa do seu amigo. Início de uma grande amizade e colaboração. Manuel Alegre confessa que ficou um pouco atrapalhado. No exílio, em Argel, ouvia os seus discos e «sentia um bocado de Portugal comigo, porque no fundo, ninguém como ela exprime o que defino por a nossa atlanticidade, essa forma melancólica e nostálgica que é a saudade.»
Quando se emociona, canta de modo tão intenso que chora. «Uma vez num barco, em Vila Franca, à noite cantei aquela música do Fado Cravo que as pessoas se ajoelharam aos meus pés. Ajoelharam-se porquê? Porque senti uma emoção muito grande. (…) Nem sei como chamar a isto. Talvez eu não seja criadora, mas quando canto estou a inventar. E, para inventar, preciso de música. O fado quando comecei era amarrado como se tivesse uma só divisão e a minha maneira de cantar deu-lhe mais duas casas. Porque nada dentro daquela divisão me deixava fugir. A minha voz queria fugir dali, mas batia na porta. Tive que cantar à minha maneira.»
«AI LUCIDEZ QUE ME DOI»
Nos anos 60 o Turismo foi uma das industrias mais agressivas em Portugal. Exportava a imagem de um país de brandos costumes (embora há anos em guerra) do Avril au Portugal - país do sol (embora em Abril águas mil), do Fado, o Futebol e Fátima. São estes os Fs que sustentam o Fascismo salazarento.
Amália é assim conotada com um dos Fs e, por isso, mal tratada por alguns militantes da esquerda mais radical (alguns deles emigrarão mais tarde para partidos de direita). Muitos desconhecem a sua generosidade e até a sua contribuição para a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos durante o fascismo, «da mesma forma apaixonada e talvez ingénua com a qual agradeceu aos donatários salazaristas que lhe proporcionaram, a ela, rapariga do povo, os palcos, os microfones» escreve o deputado comunista Rubens de Carvalho.
Amália volta a cantar Mãe Negra, embalando o filho branco do senhor…, que cantara nos anos sessenta em Angola e Moçambique. Incluída na lista de canções malquistas pelos censores do regime de Salazar, esta canção faz parte do cancioneiro da resistência ao regime. Já durante a revolução democrática e nacional do 25 de Abril canta o Fado de Peniche. No Teatro Vasco Santana participa com o actor, advogado e comunista Morais e Castro, em sessões de esclarecimento sobre o 25 de Abril sobre a situação dos artistas de espectáculo.
A democracia portuguesa acaba por lhe prestar as maiores e mais sinceras homenagens. Em 1980 é condecorada com o grau de oficial da Ordem do Infante D. Henrique pelo então presidente da República Mário Soares que a considera «uma mulher conservadora, crente e naturalmente apolítica mas que soube conviver bem com a Revolução dos Cravos». Ela própria lhe disse que a diferença entre «vocês e os de antigamente, é que vocês sentam-me à vossa mesa. Os outros recebiam-me muito bem, gostavam muito de mim e de me ouvir cantar, mas era diferente, só era recebida no fim, para cantar».
Sempre gostou de fazer versos: «coisas que sentia», reconhecendo que não é poeta. Lança o disco com poemas seus Gostava de Ser Quem Era. Em 1997 edita o Livro Versos, confirmando a sua veia poética: «Ai minha infância dorida/ Ai o meu bem que não foi/ Ai minha vida perdida/ Ai lucidez que me dói» Os seus versos são ecos empolgantes da sua voz, única, remanescente popular da poética eivada de lirismo e da atracção pela morte: «Vem morte que tanto tardas / Ai como dói / A solidão quase loucura». É homenageada pela Câmara Municipal de Lisboa. Lança um disco de inéditos Segredo. Vive com dificuldades económicas, o que a obriga a desfazer-se de algum do seu património imobiliário.
Morre a sua grande amiga a pintora Maluda 1999. Fica profundamente pesarosa. Já antes vira desaparecer o seu marido César Seabra, o seu compositor Alain Oulmain e o seu poeta David Mourão-Ferreira que a considerava como «a voz da diáspora e voz do terroir (chão), voz da distância e da intimidade, com a amplitude das mais altas vagas e a tocante descrição de recolhidos santuários».
«QUANDO CANTO, ESCUTO-ME...»
Amália Rodrigues, a última viagem. Olhos vidrados de lágrimas das pessoas simples, do povo, com as vozes embargadas, acompanham o cortejo fúnebre
São Bento é um bairro antigo de Lisboa em que se misturam odores tradicionais com outros vindos de paragens mais distantes, de Cabo Verde. Do alto das escadarias, guardadas por dois leões, ergue-se um edifício de traços clássicos, o Parlamento. Seguindo rua acima, do lado esquerdo mora Amália numa casa pombalina de sorridentes e floridas balaustradas. Quando ela passa com aquele ar melancólico que a caracteriza, o seu sorriso contagiante ilumina todos. Amália gosta de cantar na rua: «Quando canto escuto-me, e quando me escuto acabo a chorar». O mercado, a padaria e o comércio tradicional, são pontos de encontro das gentes simples. Uma vizinha fala da sincera preocupação de Amália para com os mais necessitados: «chegou a atravessar problemas financeiros de tanto dar».
Agora na casa amarela de S. Bento mora o silêncio. Na varanda encontra-se ainda pendurada uma toalha branca, símbolo solidário com o povo de Timor. Em todas as janelas e varandas, à passagem do féretro, de S. Bento à Estrela, toalhas brancas, estendidas.
O coração de Lisboa chora. Flores, lenços brancos acenam. Nas ruas, nos carros, nas lojas, por todo o lado o fado de Amália. Dor e saudade, o âmago alfacinha, trespassam. Seis da tarde. Suave melancolia, Lisboa. Largo da Estrela, a grande Basílica prevalece. Centenas de pessoas, as escadarias ocupam. Tocam os sinos. O féretro da Amália chega. Emoção geral. Nunca a multidão à solta teve tanta grandeza. Homens, mulheres, crianças, imagens sobrepostas, redondas e volumosas, dissolvem. Caras lampejadas, cabeças reluzentes, cabelos de cor nem loira nem escura, na Basílica entram. Não se distingue o novo do velho, o bonito do feio. A idade e o gesto, afirmam. Tudo se neutraliza: tempo, pessoas, coisas. Na nave central, Amália. Tudo perde o seu relevo, tudo entra em nós…
Uma mulher e um ramo de margaridas brancas, esperam. O adeus à «melhor embaixadora de Portugal no mundo». Uma outra pesarosa, sussurra: «É uma parte da nossa vida que está ali. Ela é a referência da nossa mocidade». Apesar do frio que se faz sentir ao fim da noite, há quem não arrede pé. Aguarda-se pacientemente a sua vez para chegar junto ao caixão. Choro miudinho de mulheres. Espuma dos dias, milhares de pessoas, adeus à «diva do fado». Fuga ao olhar atento da polícia: o último beijo, o último toque. Um jovem diz que não gosta de fado, «mas ouvi-la cantar arrepia-me». Amália descansa na paz do Senhor «mesmo que ele não exista, eu acredito nele».
Outono de 2000. Luminosidade morna das tardes de Lisboa. Jardim do Príncipe Real. O Grande Cedro exala aromas. Velhos reformados jogam às cartas. Velhas alcoviteiras, dormitam. Crianças brincam. Mulheres de pálpebras semicerradas, vigiam. Num ramo pendurado está um rádio tal qual pássaro feito. Ouve-se a voz de Amália: «Estranha forma de vida».
IN "VIDAS LUSÓFONAS"
Autora "LEONOR LAÍNS"