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Bandeiras de papel
Não é por temer que a TAP venha a ser mal vendida que me oponho. É apenas pela simples razão de que preferia vê-la extinta, seguindo-se a criação de uma outra companhia, se possível no dia seguinte.
1. Sempre andei na TAP, sempre lhe dei preferência mesmo quando havia
outras escolhas, sempre a gabei, privada e publicamente – e quantas
vezes não escrevi gostosamente sobre ela? – até que a realidade se impôs
e (quase) deixou de haver razão para preferência ou elogio: tantos os
contratempos, as mudanças súbitas, as greves. E os incontáveis atrasos,
causando iguais incontáveis prejuízos à chegada ao destino ao tornar
inútil e ocioso aquilo que seria um dia útil de trabalho no estrangeiro.
Mas usando ou não a companhia, o meu patriotismo não se esgota nela e
talvez mesmo não passe por lá. Que me lembre, nos últimos quarenta e tal
anos só vi os portugueses comovidos duas vezes com o país, com a
bandeira á mistura (Timor e o futebol), esta é a apenas terceira.
Datada, porém: o facto da TAP ser “companhia de bandeira” não é o mais
relevante deste dossier.
A “bandeira” não determinará o que quer que seja, não mudará as
marés, nem fará rondar o vento da venda ou do status-quo. Nem me fará a
mim mudar de opinião, apesar de nesta triste questão (eu acho-a
tristíssima), me auto-colocar numa solitária terra de ninguém: nem
prefiro a venda da TAP, nem defendo a sua manutenção como está. Estou
contra a venda não por concordar com o tão florido lote de nomes que
contestam a operação (deve ser inebriante participar em tantos e tão
diversos abaixo-assinados em Portugal), mas – não nos iludamos – o
florido lote chora esta venda sobretudo porque o governo quer
concretizá-la.
Também não é por temer que a TAP venha a ser mal vendida que me
oponho, o que já não seria pouco. É apenas pela simplicíssima razão de
que preferia vê-la extinta, seguindo-se a criação de uma outra
companhia, se possível, no dia seguinte. Enquadrada por parâmetros
racionais e regida por regras de gestão cuja seriedade residisse
(também) no facto de elas serem exequíveis, o que não parece ser o caso
actual. Infelizmente a inviabilidade desta minha posição é de 100 por
cento: as actuais estruturas da companhia, por já tão invertebradas,
nunca permitiriam a sua extinção tal o estado a que chegaram ou que se
consentiu que elas chegassem.
Excessiva a minha posição? Talvez. Mas que dizer do excesso das
vigentes mordomias hoje já “oficializadas” na TAP, como direitos que não
vejo praticados em mais nenhuma outra empresa e que não parecem
incomodar, chocar ou afligir ninguém? Como conciliar a saúde económica e
social de uma empresa com aquela espécie de “estado de excepção” que
por lá incubou há muito, aliado à recorrente chantagem dos pilotos e ao
demencial poder dos sindicatos (permanecendo porém comodamente obscuro
quem eles representam de facto)?
Se é por “isto” que alguns solicitam ao país que se chore, se
possível com uma bandeira nacional na mão, não haverá lágrimas minhas.
Nem bandeira. A TAP de que me lembro e de que tanto usufruí, não era
esta. Era confiável, cumpridora e briosa. Era formidável.
Isto dito, mais por intuição que por informação, quase nada espero da
privatização que aí vem. Embora acusando-me de “fatalismo” (por
acreditar pouco e não esconder dúvidas?) há quem me assegure que o
cuidado, a exigência e o sentido estratégico que será posto nesta
operação, fazem com que a questão não seja que a companhia venha a ser
mal vendida mas que o não venha a ser de todo. Porquê? Porque nem os
mecanismos do decreto lei da privatização nem o seu próprio caderno de
encargos permitirão que a TAP seja vendida a preço de saldo ou com
propostas que destruam o seu maior valor estratégico – o único? – que é o
hub de Lisboa), além de que as propostas são vinculativas.
Sub-entendido: ou estão “lá” as regras impostas no Caderno de Encargos
ou não estão, que a Comissão de Avaliação não quer ser “meiga nem
tolerante”.
Seja. Bons propósitos. Mas que ingredientes terão que estar reunidos
na mente e na vontade de alguém para que esse “alguém” queira comprar
uma companhia com este historial, estes sindicatos, esta dívida (que
terá que ser assumida na íntegra), selando um compromisso crucial – o hub
de Lisboa – e outro não de somenos que é a recapitalização da companhia
para, entre outras, digamos, solicitações, investir numa frota
adequada, e isto tudo de uma assentada? Um louco? Um visionário? Um
aldrabão de feira? Um benemérito?
Sim, a questão não me deixa de modo algum indiferente. Talvez por
isso não consigo encaixar-me em nenhum dos lados que se defrontam e
confrontam: uns, garantindo que a TAP não voará para outras mãos a
qualquer preço; do outro lado, uma pouco plausível plateia opondo-se à
privatização da empresa com uma ferocidade só igualada pela absurda
insistência em manter as coisas como estão, não se sabendo porém a quem
enviar depois a conta pela paralisante continuação da tão estimada
companhia “de bandeira”.
2. “Tudo” iria mudar. E mesmo que ninguém atendesse a que o “tudo”
era confuso e difuso, que importava: “começava uma nova era na Europa”;
“acabava a austeridade”, “agradeçamos aos gregos”. Não durou uma semana e
chegou a ser embaraçante. O clamor de raiva e revolta que Tsipras
queria audivelmente grego por esse Europa fora e por essa Alemanha
dentro, esvaiu-se na sua própria irremediabilidade: em lugar da rendição
da “Alemanha” e do seu titular das Finanças travestido de nazi, o
Syriza obteve a “compreensão” bem educada mas não inédita de uma mera
prorrogação de prazos (Portugal também obteve, mas com menos barulho) e
um divertido vocabulário novo: a “austeridade “ passa a chamar-se “as
dificuldades que hão-vir” (Varoufakis dixit) e a troika é agora
conhecida nos corredores de Bruxelas como “the three institutions
formerly known as the troika”. Etc. Mas não interessa muito, são só
palavras e o “ponto” é uma realidade que se resume em duas palavras: a
Grécia tem zero capacidade negocial.
De modo que a vida (de momento) seguirá como “habitualmente”,
permanecem regras e compromissos e aí não houve semântica que movesse um
cabelo. Vai ser preciso um génio da encenação para fazer crer aos
gregos que a vida que os espera será muito diferente da que lhes
proporcionava o ex-Samaras. De ficção em ficção, até á derrota final.
(esta história não pode acabar bem). E isso sim, isso é que constitui
uma falta de respeito sem tamanho pelo povo grego, isso sim é uma
indignidade face às condições de aflição em que reside grande parte
dele, isso sim é uma afronta face aos que não tem voz nem meios. Aos que
votaram Syriza e aos que não votaram: a bandeira do engano é a mesma.
Sobra porém o tal embaraço: como foi possível pôr tanta mistificação
numa operação eleitoral irresponsável de meia dúzia de exaltados (mais
de 60% dos gregos não preferiram o Syriza), tanta arrogância na certeza
da sua vitória final, tanto erro na avaliação das forças em presença,
tanta impreparação, tanta batota? Tanta falta de raízes, integridade,
regras? E em sintonia com tudo isto, que dizer da formidável vacuidade
com que o Portugal que entre nós tem acesso à media, assumiu um coração
grego, desfraldou a bandeira grega e abraçou o povo grego? Ou do
empolgamento estridente com que embarcou numa fraudulenta retórica
eleitoralista e caucionou uma mistificação sem tamanho (que outro nome
tem a ficção que o Syriza ofereceu ao seu povo senão o de uma
mistificação?). Sem se impressionar com a mochila de truques, abusos,
mentiras, expedientes que os dirigentes políticos gregos (estes e os
outros) trazem ás costas, sem nunca se entregar a um mero exercício de
memória do que foi a vida política e social na Grécia nas ultimas
décadas, fazendo enfim tábua rasa de passados turvos e presentes que não
se recomendam. Mas sem essa revisão da matéria não haverá nem lucidez
para analisar o hoje nem luz para antecipar o amanhã.
Não, não estou a ser cruel, estou a confinar-me à condição de
espectadora que foi a minha desde há meses: segui e li a maratona
eleitoral do Syriza, alinhavei aqui algumas linhas sobre ela, assumindo
até que não me parecia que “a UE estivesse aflita com a perspectiva de
vitória da extrema-esquerda grega” e que mais depressa o “estaria o
próprio Syriza, com o que se apresentaria diante de si”. Lembrava que
“há algum tempo que as instituições europeias e a própria ‘Europa’
tinham interiorizado a possível vitória de Tsipras.” E concluía que a
“realidade” de dentro de semanas a Grécia não dispôr de liquidez para o
Estado assumir as suas funções iria certamente transferir para os gregos
– mais do que para a UE – a responsabilidade de uma conduta racional e
fiável. Não me terei enganado muito. E… no entanto: há dias, um amigo
meu, “socialista de topo” com quem eu ironizava sobre o estouvado apoio
que dava aos amigos do Syriza, rejeitou “os amigos” mas respondeu-me com
grande convicção que eles eram “bons soldados de infantaria que
desbravam caminho útil”.
Mas também encontrei uma espécie de nostálgicos retardados (agora
estou a lembrar-me de um influente de direita) entretidos em fazer-me
notar “o lado romântico” do Syriza, do qual, dizia ele, “já nenhum de
nós é capaz”.
Vou ali e já venho.
3. Sim, talvez Jean Claude Juncker se tenha sentido humilhado e
ofendido, ninguém gosta de se ver preterido na sua capacidade de
iniciativa como ele terá sido há dias pelo Eurogrupo, mas, caramba,
ouvi-lo “assassinar” a troika do modo como o fez, após anos a fio, quer
na sua qualidade de líder do Eurogrupo, quer enquanto personagem de
primeiro plano nos palcos de Bruxelas, ter concordado com a sua
“existência”, espanta qualquer um. Surpreendida porém pelo pouco eco que
teve tal diatribe, falei nisto a três ou quatro pessoas bem informadas
que, malevolamente, me remeteram para o álcool que se diz que o
Presidente da Comissão ingere com generosidade: o personagem nem os
comovia, nem aparentemente os inspirava.
Entregue a mim mesma ocorreram-me pressões, conselhos, indicações dos
seus pares, etc. Quem sabe um súbito mas oportuno desejo de agradar aos
gregos depois de ter estado em activa concordância com os troianos. Até
me chegou a passar pela cabeça se seria já o efeito do seu prestimoso
amigo Silva Peneda, com quem se diz que fará dupla (céus, não seremos
poupados a nada?), para encontrar explicação para tão tardio rebate de
consciência, mas parece que a dupla só começará mais tarde a operar a
quatro mãos.
Seja como for: porque é que alguém tão supostamente qualificado
quanto Junker, a lidar a toda a hora, dentro e fora de Bruxelas, com a
complexidade e a responsabilidade do que lá se passa, sentiu agora esta
tardia indignação quanto às funções da troika? Tenho pena que não tenha
ficado totalmente claro. Ou, sequer, parcialmente claro
4. Já agora… também não ficou claro para mim o dilema, ou melhor a
contradição, proposta por alguns (imensos) políticos de esquerda que
opinam nos écrans e na imprensa: o Governo português é incessantemente
acusado (por eles), desde há mais de três anos, de se “vergar” à
Alemanha, de obedecer a Alemanha, de ser um cão de Angela Merkel e um
lacaio de Schauble. Um colectivo rastejante, sem voz, poder, influência,
critério.
Então como é que uma gente assim consegue ter tanta voz, poder,
influência e critério para imperiosamente levar os alemães a ser
implacáveis com os gregos?
IN "OBSERVADOR"
25/02/15
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