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Aconteceu.
Estou num dia mau
e respondi a um piropo
Arrancou como um desabafo. Três frases que fazem a introdução para um diálogo não requisitado. "Aconteceu. Estou num dia mau e não deu para filtrar." O que veio depois disso espelha a naturalidade com que o assédio se repete e a importância de não o ignorar.
Foi na terça-feira, a meio da tarde. Estava a regressar do trabalho, a
subir em direcção ao Jardim da Estrela, em Lisboa. A rua movimentada,
cheia de cafés e lojas de comércio. Ia sozinha, com o rosto para baixo,
agarrada ao telemóvel. Do meu lado esquerdo ouço um "Olá, princesa". Não
precisava de olhar para saber que não era ninguém conhecido. Quem me
conhece sabe que não gosto particularmente que se dirijam a mim com um
"princesa". E o historial de experiências deixava antecipar que era mais
um piropo. Houve uma voz, a de sempre, que me disse baixinho "Liliana,
ignora e segue". Não o fiz.
Parei, voltei-me para o homem. A
descrição dele aqui pouco importa. Os assédios e abusos acontecem sob
todas as formas e com todos os géneros e orientações. Todas as idades.
"Não voltes a fazer isso", disse-lhe, num tom calmo, mas assertivo. O
espanto apoderou-se da cara dele. Não estava à espera de uma resposta e
isso foi claro quando me devolveu, rispidamente e com um ar de rejeitado
ofendido: "Porquê? Não te posso cumprimentar?" "Não, não podes, não me
conheces de lado nenhum." A gaguejar, lá deixou que ouvisse um "Já vi
que és dessas", depois de tentar um "Gostas, gostas". "Somos todas
destas. Ninguém gosta disso. É desagradável. É escusado. É mal-educado."
Mandou-me embora. Disse-lhe que ia, mas que esperava que pensasse duas
vezes antes de voltar a fazer o mesmo. Virei-lhe as costas e segui
caminho. Soube-me bem. Porque senti, pela primeira vez, a olhar nos
olhos dele, que o tinha deixado desconfortável também. E que lhe dava
pelo menos uma amostra do incómodo que me fez sentir.
Partilhei o resto da conversa, resumidamente, no Twitter. Por nenhuma
razão em particular, sem presunção de causar o que quer que
fosse. Escrevi e pronto. A publicação arrancou com o título desta
crónica. O que daí resultou é o que me leva a escrever este texto. E não
foram reacções geracionais, o que me preocupou ainda mais em relação ao
futuro. Vamos por pontos.
Não aceito que me digam como me devo sentir. Na terça-feira, aquela
frase mexeu com a minha tranquilidade, o meu corpo e a minha consciência
de espaço. Como alguém me dizia, a privacidade, enquanto direito
individual, não depende do espaço físico que a pessoa ocupa. E assédio é
isso. Não é "uma simpatia". Um "princesa" nunca é só um "princesa". Não
é a frase. É o que vem com ela. É o olhar nojento e o sorriso lascivo. É
o arrasto na intervenção. É o tom jocoso com que é feito. Porque a base
do piropo é igual. Seja ele mais explícito ou menos explícito, mais
disfarçado ou mais visual. Seja um "Olá, princesa", "Lambia-te a cona"
ou até um #grabthembythepussy. Em todos os exemplos, é cuspir testosterona.
A primeira vez que me senti assediada tinha 14 anos. Estava na primeira
semana de aulas e fui, com umas colegas de turma, passear durante a hora
de almoço. Numa rua perto do Castelo de Leiria, um homem baixou as
calças quando passámos e começou a masturbar-se. Porque nos é dito desde
sempre que "Não tem mal, não ligues, é gente doida, o melhor é
ignorar", não contámos a ninguém.
Demorei 13 anos a fazê-lo. E tenho mais coisas a dizer. Isto não se
esquece. A sensação de insegurança constante não se esquece, ainda que
recalcada num cantinho. Não pára. Não desaparece o desconforto e a
opressão social do "Não ligues, ignora, o melhor é não fazer nada".
Enquanto não se fizer nada, enquanto dissermos a nós mesmas que "não tem
mal", que "princesa nem é ofensivo", não se perde esta concepção de que
nos devemos sentir lisonjeadas por um perfeito desconhecido elogiar o
nosso corpo. "É uma simpatia." Não é. E há formas elegantes de abordar
alguém.
Um piropo não é um elogio. Um piropo é um exercício de poder.
De quem acha que pode — e não pode. De quem acha que as pessoas querem
ser objectivadas pelo seu corpo e que estão à disposição de quem quer.
Ou queria. Não estão. Ninguém tem de estar sujeito a lidar com os
comentários causados pela "atracção sexual" que estimula.
"Mas
deu-lhe conversa porquê? Porque respondeu ao piropo? Não tem mal, não
ligues, é gente doida, o melhor é ignorar." Repitam comigo: responder
não é dar conversa. Tal como piropo não é um cumprimento.
Se querem cumprimentar alguém, digam-lhe bom dia. Aliás, venho de uma
aldeia e por isso cresci e regresso frequentemente a um sítio onde,
mesmo entre desconhecidos, se trocam "boas tardes" e "bons dias" em
caminhos cruzados. Ninguém está a impor um apartheid entre
homens e mulheres, homens e homens e mulheres e mulheres. As únicas
pessoas que têm receio disso são as que não têm qualquer integridade e
noções básicas de interacção social.
No meio dos energúmenos, muitas raparigas e mulheres (e homens)
partilharam as suas experiências. E isso recordou-me de duas outras
recentes. No último ano e meio, dois estranhos, ambos mais velhos,
tocaram-me de forma imprópria e deliberadamente em plena luz do dia.
O primeiro foi há cerca de um ano, no comboio de Alcântara-Terra.
Estava sentada do lado da janela, quando um homem se sentou ao meu lado.
Colocou o casaco entre o espaço que separava os nossos assentos,
cobrindo-me uns centímetros da coxa. Não dei importância. Não passaram
dez segundos até começar a sentir um corpo quente em cima da minha
perna. Berrei-o imediatamente. Levantou-se e saiu a correr na estação
seguinte. À minha volta houve umas cabeças que se voltaram, mas a
curiosidade não chegou para perguntar se estava bem ou o que tinha
acontecido. Lembro-me que durante dias senti repulsa. Durante dias
conseguia sentir a mão daquele tipo na minha perna. O segundo caso foi
numa viagem de autocarro entre Lisboa e Porto. O homem, que não falava
português ou inglês, pediu-me ajuda para lhe explicar onde é que devia
sair. Dei-me ao trabalho de abrir o mapa de Portugal no telemóvel para
lhe explicar. Começou a diminuir a distância, eu ia-me afastando para a
ponta do meu assento. Pôs a mão na minha perna. Disse-lhe: "Stop."
Tirou. Momentos depois, a mesma abordagem. Olhei para ele, para a mão e
novamente para ele "No". Fingiu que não percebeu. Com a minha mão, tirei
a dele e mudei de lugar e esforcei-me para que ele não percebesse que
me tinha deixado insegura. Só ontem, quando contava a alguém esta
história é que me apercebi que nem contei ao motorista. Que a guardei
porque "Não tem mal, não ligues, é gente doida, o melhor é ignorar".
Obviamente que o "Olá, princesa" não foi o pior que me
aconteceu. Mas isso não lhe tira importância. Talvez pela frequência da
sua repetição, ou talvez por acompanhar de perto denúncias de assédio,
abuso e violência sexual. Cheguei ao meu limite em relação à
normalização e não admito dar espaço à mínima tentativa. Mesmo que nos
digam "Não tem mal, não ligues, é gente doida, o melhor é ignorar".
IN "PÚBLICO"
04/08/18
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