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O mito da parentalidade positiva
Até que ponto a parentalidade positiva não é a inversão da educação? Isto é, não serão os pais que estão a ser reeducados no processo de crescimento da própria criança?
As férias dão para tudo: observar, descontraidamente, o que se passa à
nossa volta, ouvir desabafos de toda e qualquer espécie e, até,
ficarmos a pensar no que vemos e ouvimos.
Todos os anos vou para a mesma praia e, por isso mesmo, encontro as
mesmas famílias, de ano para ano. Alguns jovens conheço desde tenra
idade, e, hoje, já são universitários que frequentam aqueles “spots” da
moda que só encerram as portas às 7 da manhã, recuperando das suas
noites perdidas com sestas longas, no areal; há crianças que são
pequeninas, à espera de ir para a escola; há as que já lá andam; enfim,
há de tudo um pouco e de todas as idades.
Nas minhas leituras, tropecei num texto sobre a parentalidade
positiva que me despertou alguma curiosidade para esta filosofia
educativa, que parece ter muitos seguidores, ou pelo menos, assumem-se
como tal, ainda que não sigam a cartilha a todo o momento, nem a
apliquem nas situações mais críticas. Mas gostam que os vejamos como
pais que descobriram uma nova forma de educar os seus filhos, muito mais
civilizada e equilibrada, do que a tradicional ou intuitiva, que já
está ultrapassada.
Não é qualquer um que pode aspirar a usar este rótulo, ou a pertencer
a este grupo restrito. São exigidas certas condições obrigatórias para
se destacarem do comum dos pais e serem elevados à condição de divindade
parental. Mas o primeiro passo para ascender à divindade parental é o
de incorporar a parentalidade positiva no dia-a-dia, na relação com os
filhos, e, consequentemente, passar a ser outra pessoa.
Para podermos exercer a parentalidade positiva temos que iniciar um
processo de alteração profunda da nossa natureza. Não está ao alcance de
qualquer um. Por exemplo: se é uma mãe que grita quando os seus filhos
fingem que não a ouvem, à décima vez que lhes pede para irem tomar
banho, esqueça! Não reúne uma das condições necessárias para ser
considerada uma mãe positiva: não gritar. (Ainda não percebi se falar
alto é aceitável, mas gritar, nunca!) Outro: se é daqueles pais que está
a repreender o seu filho por ter puxado os cabelos à irmã e põe uma
cara séria e fechada enquanto o faz, também pode escolher outra
filosofia educativa, porque um pai positivo chama a atenção do seu filho
com um sorriso na cara e com um ar doce.
Este é o primeiro passo para abraçar esta prática: olhar para o seu
interior e distinguir o que tem que mudar em si, para poder ser este
tipo de pai. Nada de gritos, palmadas são proibidas e até impensáveis
(tem que reprimir este ato primitivo, no momento em que se começa a
desenhar na sua cabeça o gesto de levantar a mão), revirar os olhos ou
caras desanimadas não são aconselháveis, a crítica pode ser prejudicial
ao desenvolvimento da criança, mesmo a construtiva, e, muito importante,
não pode fingir que não vê certos disparates! Isso não vale!
Se conseguir converter-se neste tipo de pai ou de mãe, não há dúvidas
que terá percorrido meio caminho para a divindade parental, e que se
tornará num ser humano muito mais equilibrado e consciente das suas
fragilidades.
As mesmas fragilidades que conseguiu abandonar durante
este processo e que já não fazem parte de si: a frustração, a angústia, a
fúria, a zanga, a revolta, o medo, a insegurança. Não sendo uma emoção,
eu acrescentaria o cansaço. Na parentalidade positiva não há espaço
para o cansaço e para os imprevistos, que para os pais comuns são o
“trigger” para alguns comportamentos mais lunares, ou emotivos.
A questão que se me coloca é uma: até que ponto a parentalidade
positiva não é a inversão da educação? Isto é, não serão os pais que
estão a ser reeducados no processo de crescimento da própria criança?
A opção de conversar com os meus filhos sobre os seus erros, de lhes
chamar a atenção, explicando as consequências das suas ações, para o
que podem melhorar, ou até mesmo de ser um pouco mais exigente para com
eles, não advém de uma nova filosofia educativa, mas sim de quem eu
sou, da educação que recebi, da forma como me posiciono perante a
adversidade e as contrariedades e, acima de tudo, do amor que nasceu com
cada um deles.
Sou positiva na parentalidade que desempenho a todo o momento, por
eles, por mim, por nós como um todo. Como acredito que todos os pais e
mães o sejam, ou se esforcem por ser, para bem dos seus filhos e da
harmonia familiar. Quando vejo uma mãe a por em prática todo este
positivismo, perante uma criança que se agiganta à sua frente com uma
resposta torta, com uma birra descontrolada, ou com um gesto impróprio,
cerrando os dentes enquanto sussurra ao pequeno ditador que tem direito à
sua indignação e que compreende a sua frustração, fico angustiada. Não
pela criança, mas pela mãe que já está fora de pé, e que a qualquer
momento ou se afoga, ou implode porque não ousou exercer a autoridade de
mãe para educar o seu filho.
Autoridade não é sinónimo de maus tratos, nem provoca traumatismos
emocionais. É a capacidade que um pai tem para se fazer obedecer, no
melhor interesse dos seus filhos. Excluam, desde já, a autoridade
coerciva que é o outro extremo do que aqui se trata.
Longe vão os tempos em que a autoridade parental era considerada
sagrada, bem como o respeito pelos pais estava no topo das obrigações
dos filhos. Hoje, assistimos ao declínio tendencial da autoridade
parental e à ascensão dos caprichos e excessos de vontade dos mais
pequenos. Os mesmos que ainda não aprenderam o suficiente para tomar
decisões que podem afetar, determinantemente, o seu crescimento, por
responsabilidade dos pais que desistiram de ser pais e que,
inconscientemente, consideram que orientação é o mesmo que castração.
Uma contradição, esta que vivemos e assistimos em várias famílias:
filhos a quem lhes é permitido desobedecer aos pais e pais que são
responsabilizados por tudo o que de errado acontece aos filhos.
IN "i"
27/08/18
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