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Desigualdade
em tempos de crise
Além da luta que travamos contra o vírus, há também uma luta de modelo de sociedade que é travada entre o medo e a solidariedade. Saibamos todos e todas privilegiar a solidariedade, apoiando as medidas que respondem às necessidades de todos e de todas.
A cada crise que enfrentamos pesam mais as décadas de integração
desigual e do grande consenso liberal que transformou o mapa político
europeu. Em Portugal, como nos restantes países da União Europeia,
vivemos a consequência da desistência da luta pelos direitos do
trabalho, do combate à pobreza e às desigualdades e da defesa do Estado
social, mesmo que as sociedades se procurem organizar. A evidência é a
forma como a propagação da Covid-19 nos põe à prova como sociedade a
cada dia que passa.
Aqui em Bruxelas, onde estou, criaram-se redes de solidariedade,
grupos organizados que, bairro a bairro, procuram que ninguém fique
isolado. A organização é online, mas a informação é colocada nos
edifícios com os contactos para que quem não tem acesso às redes
virtuais saiba quem pode contactar. De Portugal chegam-me relatos
semelhantes. Sendo atitudes louváveis que mostram o melhor de nós, serão
estas demonstrações de solidariedade comunitária suficientes?
Infelizmente, não são.
Nestes dias, é impossível não pensar nas pessoas que vivem sozinhas,
nas pessoas com deficiência, nas pessoas sem abrigo, nos refugiados, nos
cuidadores informais, enfim, em tanta gente a quem as medidas de
contingência não chegam ou nem sequer têm condições para pô-las em
prática. É impossível não pensar trabalhadores precários e nas pessoas
que, tendo vínculos contractuais estáveis, recebem salários baixos, e a
quem a protecção laboral não chega. É impossível não pensar nas vítimas
de violência doméstica e no que o confinamento pode significar nas suas
vidas.
As crises tornam ainda mais visíveis as desigualdades e a injustiça.
As desigualdades porque não estamos todos nas mesmas condições de
responder à exigência do momento e nem todas as pessoas têm a mesma
capacidade de mobilizar a solidariedade alheia, sendo atiradas para
terrenos ainda mais invisíveis. A injustiça porque, mesmo que o vírus
não escolha hospedeiros, as situações de crise afectam sempre mais os
mais frágeis.
O isolamento social tem riscos acrescidos para quem já está
abandonado e é nossa obrigação percebê-lo e agir para proteger os
sectores mais desfavorecidos da população. Nesta crise está em teste a
nossa capacidade de aprender com os erros passados e não deixar ninguém
para trás. O reforço dos serviços públicos, dos direitos laborais e da
protecção social são mesmo os instrumentos fundamentais para sairmos
mais fortes e mais humanos de tudo isto. Evitar aproveitamentos,
autoritarismo e mecanismos de exclusão são os grandes desafios que temos
pela frente. Além da luta que travamos contra o vírus, há também uma
luta de modelo de sociedade que é travada entre o medo e a
solidariedade. Como sabemos, o medo nunca foi grande conselheiro.
Saibamos todos e todas privilegiar a solidariedade, apoiando as medidas
que respondem às necessidades de todos e de todas.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
21/03/20
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