Um país pequeno
A triste verdade é que são sempre os mesmos. São sempre os mesmos no topo do topo, e são sempre os mesmos na base das bases.
Não me refiro, naturalmente, à área geográfica, que essa é o que é.
Nem tão-pouco ao número de habitantes, que é também o que é, e que é,
sobretudo, o que seria expectável, combinando o aumento da longevidade,
com o decréscimo da natalidade e os contingentes migratórios.
Refiro-me a outro tipo de pequenez que, de tão enraizada nos nossos
quotidianos, já se converteu numa característica estrutural, daquelas
perante as quais vamos, como em tantas outras coisas, encolhendo os
ombros, enquanto, resignados, dizemos entredentes a celebérrima frase
“são sempre os mesmos!”. E a triste verdade é que sim, que são sempre os
mesmos. São sempre os mesmos no topo do topo, e são sempre os mesmos na
base das bases.
Pelo meio, e como que para nos assegurar que o sistema, nomeadamente o de ensino,
até funciona, e que o esforço e o mérito até são premiados, lá surgem,
de quando em quando, umas excepções que entram, com pompa, no quadro de
honra do elevador social.
Se excluirmos estas excepções, mais
aquelas que resultam do “chico-espertismo” ou as outras que configuram
algumas trajectórias, ao que parece construídas a pulso, mas que têm em
comum o facto de alguns anos dessas trajectórias surgirem como que
envoltos em nebulosas, a verdade é que são mesmo sempre os mesmos.
E poder-se-ia dizer que estes “mesmos” são frutos da revolução e da
democracia. Mas não o são. Basta que se atente nos apelidos, para que se
perceba que não o são, e que constituem, na verdade, mais uma das
heranças do Estado Novo.
E curiosamente, se calhar pela pequenez do país, muitos do que se
opuseram ao regime, carregavam, eles próprios, esses apelidos (afinal,
todas as famílias têm os seus enfants-terribles), o que lhes conferiu toda uma presunção de autoridade moral, na democracia acabada de nascer.
A
elite financeira, social, política e inclusive intelectual, em
Portugal, é um aquário. Redondo. Um aquário onde nadam, sempre à roda,
cardumes vorazes, mas aparentemente inofensivos, de Manecas, Pituxas,
Tarecos, Pitas, Bebés, Quicos e todo um sem-fim de petit-noms,
que antecedem os ditos apelidos, e funcionam como uma espécie de
chancela de estatuto social, ao mesmo tempo que sugerem uma evidente
endogamia de classe.
Uma endogamia que domina e controla na sombra, as mais das vezes atirando para a frente as tais figuras dos “Chicos-Espertos” e dos “Fura-Vidas”,
espécies autóctones de fulgurante e obscura ascensão que, deslumbrados
com a ilusão de pertença, se vão movendo ao ritmo das cordas, ou o mesmo
é dizer, ao ritmo de contas bancárias mais arredondadas no fim do mês,
que hão-de significar um descanso, também ele mais arredondado e
almofadado, no momento da retirada (que será mais ou menos estrepitosa,
mas que seguramente, terá visto garantida, previamente, uma qualquer
comenda, pelos extraordinários feitos à nação).
Saem de cena uns “Fura-Vidas”,
ascensoristas sociais de renome, e permanecem os outros, ou melhor, os
“mesmos” que, girando no seu aquário privado, não têm qualquer
dificuldade em fisgar um novo candidato ao ascensor, extasiado perante a
intimidade dos jantares exclusivos, no fim dos quais é despedido, por
entre sorrisos, com um abraço que lhe cola, nas costas do blazer lustroso, a tarja “burgessos”.
Garante-se, assim, que permanecem “os mesmos” no topo do topo da pirâmide. Aquele topo que não alimenta as revistas do jet-set, pelo contrário foge delas, nem entra nessas almejadas listas das “celebridades”, nas quais os “Chicos-Espertos”
se pelam por aparecer, em poses falsamente naturais, numa evocação
daqueles retratos antigos, que insistem em assombrar as casas onde já
ninguém mora, e em que os retratados contemplam a máquina com expressões
hirtas, de atemorizado espanto.
Mas garante-se, também, que na exacta base dessa mesma pirâmide vão
permanecendo “os mesmos”, reproduzindo-se de geração em geração,
igualmente iletrados (ainda que com a escolaridade completa), igualmente
pouco qualificados (ainda que licenciados), igualmente excluídos
(porque a exclusão é multiforme) e igualmente calados
Calados, como calados estiveram os seus avós e os seus bisavós.
Calados, porque a pobreza cala e a ignorância cala mais ainda, e a
verdade é que, numa e noutra, ainda há um longo caminho a percorrer. Um
caminho que está muito para além das estatísticas e dos indicadores
vários que, numa aparência de pautas escolares, atestam a cumpridora
exemplaridade dos países-alunos.
Até lá, continuaremos a brindar aos “mesmos” e à nossa pequenez. Que se hão-de manter, por muitos anos, e bons.
* Socióloga; professora universitária ISCSP-ULisboa
IN "PÚBLICO"
13/07/20
** 𝑶𝒓𝒂 𝒂𝒒𝒖𝒊 𝒆𝒔𝒕𝒂́ 𝒖𝒎 𝒂𝒓𝒕𝒊𝒈𝒐 𝒅𝒆 𝒐𝒑𝒊𝒏𝒊𝒂̃𝒐 𝒒𝒖𝒆 𝒒𝒖𝒂𝒍𝒒𝒖𝒆𝒓 𝒅𝒐𝒔 𝒏𝒐𝒔𝒔𝒐𝒔 𝒑𝒆𝒏𝒔𝒊𝒐𝒏𝒊𝒔𝒕𝒂𝒔 𝒈𝒐𝒔𝒕𝒂𝒓𝒊𝒂 𝒅𝒆 𝒕𝒆𝒓 𝒆𝒔𝒄𝒓𝒊𝒕𝒐, 𝒎𝒖𝒊𝒕𝒐 𝒐𝒃𝒓𝒊𝒈𝒂𝒅𝒐 𝒑𝒓𝒐𝒇𝒆𝒔𝒔𝒐𝒓𝒂.
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