Nós, as abelhas e 2014
Todos fazemos parte de um sistema integrado, em que ninguém sobrevive sozinho.
E chegamos a 2014. Sei que já lá vão 10 dias que
inauguramos o ano, mas o certo é que ainda não me saiu da cabeça a lista
de objetivos que pretendo cumprir até ao último dia de dezembro
próximo. Todos os anos faço uma e, verdade seja dita, não me tenho saído
mal no atingir das metas que, ano após ano, me vou impondo numa lógica
de autodisciplina e automotivação. É claro que muitas vezes há em que
sou surpreendida pelas contingências da vida que me trocam as voltas,
obrigando-me a rever os meus objetivos e, sobretudo, a constatar que,
por muito organizada que eu seja, há sempre algo imprevisível que escapa
ao meu domínio.
Porque, afinal, não estou só no mundo. Os meus planos, por muito
pessoais que sejam, dependem sempre, direta ou indiretamente, dos
outros. Não vale a pena enganar-me acerca deste facto. Sem a colaboração
dos outros, não há lista de objetivos que se concretize. Vem daí o me
ter lembrado de fazer uma que assuma essa dependência, que enumere
objetivos gerais que nos abranjam a todos e que, a se cumprirem,
permitirão que a maioria dos meus objetivos pessoais e a dos outros
cheguem a bom porto.
Na verdade, pensei, num primeiro momento, que um elencar de objetivos
desta natureza seria interminável, dado que, teoricamente, estamos a
falar de objetivos comuns a todos e, enquanto tal, a um sem fim de
gostos e de sensibilidades. No entanto, depois de muito ponderar,
constatei o paradoxo de que, quanto maior é o universo a abranger, menor
é o de objetivos gerais a serem considerados prioritários para 2014.
Chega, com efeito, apenas traçar três metas para que cada um possa
concretizar os seus objetivos com a ajuda dos outros. Chega, de facto,
somente, ser mais justo, mais tolerante e mais generoso com os outros e
eles connosco.
Dir-me-ão que não é bem assim, que sou simplista e ingénua de mais, que
há muitos outros aspetos a considerar... A competência, a perseverança,
a tenacidade...
Talvez sim, mas o certo é que, quando o nosso campo de ação é tão
limitado como o é neste caso, afinal estamos a impor objetivos aos
outros, temos de nos cingir ao essencial. E o essencial é mesmo a
justiça, a tolerância e a generosidade.
Se assim não fosse, a quem, por exemplo, definiu como objetivo para este
ano ascender profissionalmente, bastaria para tal o domínio da técnica,
o profissionalismo e a dedicação. Todavia, sabemo-lo bem, muitas vezes
não são estes factores que ditam a promoção profissional, mas antes o
tráfico de influências, com os conhecidos “jeitinhos” e “palavrinhas”
tão ao gosto do ser português, e os compadrios. Se patrões, chefes e
colegas forem justos, não haverá, com certeza, cunha que pegue em 2014.
Quem, por outro lado, se comprometeu consigo próprio a assumir,
publicamente, as suas diferenças, sejam elas mais ou menos positivas,
precisa da compreensão e do respeito dos outros, sob pena de ser
ostracizado, humilhado e até excomungado. Se houver mais tolerância de
cada um de nós, qualquer objetivo que jogue no xadrez bicolor do
preconceito e do tabu deixará de transformar a vida de quem ousa ser
diferente num verdadeiro inferno durante este e os próximos anos.
E a generosidade? É inegável que, sem ela, fica tudo comprometido. Se
calhar, aliás, é essa a razão por que há objetivos que transitam de ano
para ano sem concretização possível. Porque precisam do afeto, da boa
vontade, da gentileza dos outros. E não há quem os queira dar. Às vezes
pergunto-me onde para o nosso humanismo. Vejo, não raras ocasiões, gente
capaz de se comover até às lágrimas quando arrebatada por uma música,
um bailado ou, simplesmente, por uma obra de arte, mas que, perante a
angústia humana, se mostra cruel e indiferente. Gente que mobiliza
esforços para sensibilizar o mundo inteiro para a defesa dos animais e,
no entanto, é incapaz de gestos de solidariedade e de compreensão para
com os seus pares. Gente que prega o bem e se extasia com a maledicência
e a calúnia. Gente má que inveja o sucesso dos outros, tudo fazendo
para o destruir. Gente que crítica a traição, mas não hesita em ser
desleal. Gente que, quando posta à prova, não olha a meios para atingir
fins. Gente que explora o trabalho que não passa. Gente que fecha os
olhos à pobreza do vizinho. Gente que se está nas tintas para o
desmoronar de vidas que não a sua e a dos seus. E é essa gente, gente
como nós, que está ao nosso lado, testemunhando a nossa existência e,
portanto, fazendo parte dos outros que, por sua vez, fazem parte
daqueles de que precisamos para que os nossos objetivos se tornem
realidade.
Por isso, volvida apenas uma dezena de dias sobre o início de 2014, dei
comigo a constatar que, provavelmente, a minha lista não vai para a
frente se não lhe juntar os objetivos gerais que, espero, cada um
acrescente à sua: mais justiça, mais tolerância, mais generosidade.
Todos fazemos parte de um sistema integrado, em que ninguém sobrevive
sozinho. Einstein, a propósito de sistemas integrados, dizia que, se as
abelhas desaparecessem do planeta, o homem e os animais não resistiram
mais do que quatro anos. Porque tudo e todos têm um papel a cumprir no
mundo que habitamos. Eu acredito nisso. Sejamos, pois, em 2014, abelhas
que polinizam mundos alheios, contribuindo para que os sonhos e os
objetivos dos outros germinem. E, assim, os nossos também.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
10/01/14
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