17/06/2019

MARIA ROCHA

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"Os TSDT(s) para lá de 
Hipócrates e de Florence Nigthingale"

A história da saúde ficará marcada no século XX e seguintes pelo aparecimento de novos atores, "os outros", que não acreditam na canonização de médicos e enfermeiros. O século XIX e XX tornam a saúde interdisciplinar e não apenas da disciplina médica ou de enfermagem. Os TSDT são a revolução. E essa é uma revolução que por variadas razões se fez sem grande alarido, silenciosa, dolorosa, com gritos de socorro tantas vezes abafados. Deixo exemplos recentes: uma greve por tempo indeterminado que a comunicação social silenciou, tornou invisível o enorme esforço humano e financeiro de um grupo profissional; o número de exames e terapêuticas adiados que ninguém noticiou; as "n" manifestações com números de adesão que fariam inveja a qualquer grupo, mas completamente ignorados dos telejornais em horário nobre; da impreparação da comunicação social sobre o que fazem estes profissionais, do seu peso na saúde de todos os portugueses, desde que nascem e durante toda a sua vida.

Não tenhamos equívocos. É mesmo uma revolução o que os TSDT têm vindo a operar nos últimos 20 anos, com maior visibilidade nos últimos 4, por via das redes sociais. É verdade que ainda são muitos os que não se aperceberam da sua presença e da sua importância no SNS ou em qualquer grupo privado de saúde. Anos de luta pela existência, pela autonomia, pela valorização que tarda. Muita indignação, frustração e conflito em relação à comunicação social que continua a não dar a devida importância a estas profissões que se arrumam no acrónimo TSDT. Esta desatenção da imprensa falada e escrita é difícil de explicar e deixa espaço para as mais variadas especulações. Todavia, é expectável que quando se aperceberem da sua importância, de como são absolutamente incontornáveis em qualquer entidade de saúde, as consigam tornar uma marca profissional mais "friendly" e próxima da população.

O caminho tem sido de dor, de desanimo, de muita catarse interna, de desavenças, de egos mais ou menos exaltados, e isso é muito bom. O isolamento a que as boas práticas nos obrigam para se produzirem excelentes diagnósticos e terapêuticas, um trabalho silencioso, solitário, invisível e minucioso, centrado no paciente, do qual os outros recebem os louros, contribui para a invisibilidade de 18 profissões.

Mas é legitimo pensar que isto um dia será suprimido?
Não sei se o caminho é suprimir se é desconstruir esta visão que nós temos de nós mesmos. Como desconstruo as minhas invisibilidades, como desconstruo o que é patriarcal, aqueles a quem é dado voz à custa do meu trabalho. O que me interessa como TSDT é como vou ajudar a construir este novo processo, colocando-me no centro do diagnóstico e terapêutica, sem ocupar o espaço de ninguém. Como este momento que vivemos de consciencialização do grupo se pode reverter no processo de desconstrução do que somos e na construção do que seremos.

Teremos de começar por enfrentar os nossos próprios medos, vergonhas, inseguranças, ignorâncias, fragilidades, assumindo a "rejeição" de comportamentos, interiorizando essa rejeição e partir para novas construções sustentadas teoricamente. É preciso estudar, ler, refletir e deixar de "achar". É preciso pensar. É preciso conhecer e saber. É preciso informar bem. É preciso encontrar a linguagem. 
 É preciso ouvir.

É preciso reescrevermos e valorizarmos currículos que façam pontes. Que ao sentimento envergonhado de "porque nunca me importei" "que história é esta de uma saúde que me excluí" passemos para o reconhecimento do "eu agora sei e importo-me", "eu sou responsável todos os minutos pelos meus atos que são o espelho do meu grupo profissional".

Ultrapassarmos a ideia de dignidade e moralidade, dessa quase teologia que deve muito ao bem e ao mal e em nada valorizam nenhuma classe profissional, e tornamo-nos políticos sem complexos. Politizarmo-nos obriga-nos a compromissos, a criar normativas alterando a atual "normalidade".
Os TSDT estão num processo de novas linguagens, descrentes dos discursos do passado, de elocuções que os excluam e canonizem outros, que se demonize as suas práticas por exames e terapias mal requisitados, solicitados por outros. É preciso descolonizar os discursos, reinventar a linguagem, reunir quem anda no terreno e a trabalhar estes temas.

Temos, em relação aos outros, um desfasamento de tempo. Mas temos mais coisas em relação aos outros: ninguém sabe onde nos colocar. Se na prateleira da clínica, se na da intervenção, se temos muito ou pouco contacto com os doentes ou se mesmo a ausência de contacto é um facto. Se assim é como nos arrumam?

Não temos Hipócrates não temos Florence Nigthingale e ainda bem, porque fazemos alguma confusão e isso dá-nos poder. A confusão é encantatória porque é o nosso espaço para construirmos novas linguagens. Para continuarmos a ser revolucionários. Esta saída da visão clássica permitirá novos discursos, claramente híbridos, claramente diferentes dos existentes, claramente destruidores de certos discursos de poder histórico, estrutural, institucional ou outro. É o espaço para novas e inovadoras retóricas.

Assumirmos que o poder tem um discurso que nos minimiza, que não progrediu com a evolução das nossas profissões, que é preconceituoso, que legisla como quer, que cria regras à sua maneira, que é violento e arrogante para os mais fracos porque aritmeticamente menores. O discurso traduzido em atitudes, na forma como nos ignoram, como nos excluem da equação em variados projetos mostra que a iniquidade é a supremacia de certas classes. Nós estamos legitimados pelas nossas graduações e somos incontornáveis, presentes em todo o lado nos sistemas de saúde, mas não temos direito a fazer parte da maioria dos projetos. Este vigor de outras classes perpetua as relações de poder que começaram com a noção de estado e de hospital, que vêm do século XVIII.

É hora de não perdermos esta oportunidade. É importante ler o passado não com excesso de exaltação, mas desmontando passo a passo os enunciados. Desconstruir sem minimizar designações anteriores como preparadores, ajudantes, auxiliares, paramédicos, técnicos. O nosso futuro, de diagnóstico e terapêutica, deve ser enriquecido com todas as áreas, digo as "soft" e as "hard sciences", não fechando a porta a nenhum saber cientifico, no processo de consciencialização, que chamo a "virada dos graduados das áreas de diagnóstico e terapêutica" ("graduated from the areas of diagnosis and therapeutics turn"), conceito resgatado ao filósofo Richard Rorty, da sua obra "Linguistic Turn".
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mariagoulaorocha@gmail.com

* Técnica superior das áreas de diagnóstico e terapêutica

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
14/06/19

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