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"Os TSDT(s) para lá de
Hipócrates e de Florence Nigthingale"
A história da saúde ficará marcada no século XX e seguintes pelo
aparecimento de novos atores, "os outros", que não acreditam na
canonização de médicos e enfermeiros. O século XIX e XX tornam a saúde
interdisciplinar e não apenas da disciplina médica ou de enfermagem. Os
TSDT são a revolução. E essa é uma revolução que por variadas razões se
fez sem grande alarido, silenciosa, dolorosa, com gritos de socorro
tantas vezes abafados. Deixo exemplos recentes: uma greve por tempo
indeterminado que a comunicação social silenciou, tornou invisível o
enorme esforço humano e financeiro de um grupo profissional; o número de
exames e terapêuticas adiados que ninguém noticiou; as "n"
manifestações com números de adesão que fariam inveja a qualquer grupo,
mas completamente ignorados dos telejornais em horário nobre; da
impreparação da comunicação social sobre o que fazem estes
profissionais, do seu peso na saúde de todos os portugueses, desde que
nascem e durante toda a sua vida.
Não tenhamos equívocos. É mesmo
uma revolução o que os TSDT têm vindo a operar nos últimos 20 anos, com
maior visibilidade nos últimos 4, por via das redes sociais. É verdade
que ainda são muitos os que não se aperceberam da sua presença e da sua
importância no SNS ou em qualquer grupo privado de saúde. Anos de luta
pela existência, pela autonomia, pela valorização que tarda. Muita
indignação, frustração e conflito em relação à comunicação social que
continua a não dar a devida importância a estas profissões que se
arrumam no acrónimo TSDT. Esta desatenção da imprensa falada e escrita é
difícil de explicar e deixa espaço para as mais variadas especulações.
Todavia, é expectável que quando se aperceberem da sua importância, de
como são absolutamente incontornáveis em qualquer entidade de saúde, as
consigam tornar uma marca profissional mais "friendly" e próxima da
população.
O caminho tem sido de dor, de desanimo, de muita
catarse interna, de desavenças, de egos mais ou menos exaltados, e isso é
muito bom. O isolamento a que as boas práticas nos obrigam para se
produzirem excelentes diagnósticos e terapêuticas, um trabalho
silencioso, solitário, invisível e minucioso, centrado no paciente, do
qual os outros recebem os louros, contribui para a invisibilidade de 18
profissões.
Mas é legitimo pensar que isto um dia será suprimido?
Não
sei se o caminho é suprimir se é desconstruir esta visão que nós temos
de nós mesmos. Como desconstruo as minhas invisibilidades, como
desconstruo o que é patriarcal, aqueles a quem é dado voz à custa do meu
trabalho. O que me interessa como TSDT é como vou ajudar a construir
este novo processo, colocando-me no centro do diagnóstico e terapêutica,
sem ocupar o espaço de ninguém. Como este momento que vivemos de
consciencialização do grupo se pode reverter no processo de
desconstrução do que somos e na construção do que seremos.
Teremos
de começar por enfrentar os nossos próprios medos, vergonhas,
inseguranças, ignorâncias, fragilidades, assumindo a "rejeição" de
comportamentos, interiorizando essa rejeição e partir para novas
construções sustentadas teoricamente. É preciso estudar, ler, refletir e
deixar de "achar". É preciso pensar. É preciso conhecer e saber. É
preciso informar bem. É preciso encontrar a linguagem.
É preciso ouvir.
É
preciso reescrevermos e valorizarmos currículos que façam pontes. Que
ao sentimento envergonhado de "porque nunca me importei" "que história é
esta de uma saúde que me excluí" passemos para o reconhecimento do "eu
agora sei e importo-me", "eu sou responsável todos os minutos pelos meus
atos que são o espelho do meu grupo profissional".
Ultrapassarmos
a ideia de dignidade e moralidade, dessa quase teologia que deve muito
ao bem e ao mal e em nada valorizam nenhuma classe profissional, e
tornamo-nos políticos sem complexos. Politizarmo-nos obriga-nos a
compromissos, a criar normativas alterando a atual "normalidade".
Os
TSDT estão num processo de novas linguagens, descrentes dos discursos
do passado, de elocuções que os excluam e canonizem outros, que se
demonize as suas práticas por exames e terapias mal requisitados,
solicitados por outros. É preciso descolonizar os discursos, reinventar a
linguagem, reunir quem anda no terreno e a trabalhar estes temas.
Temos,
em relação aos outros, um desfasamento de tempo. Mas temos mais coisas
em relação aos outros: ninguém sabe onde nos colocar. Se na prateleira
da clínica, se na da intervenção, se temos muito ou pouco contacto com
os doentes ou se mesmo a ausência de contacto é um facto. Se assim é
como nos arrumam?
Não temos Hipócrates não temos Florence
Nigthingale e ainda bem, porque fazemos alguma confusão e isso dá-nos
poder. A confusão é encantatória porque é o nosso espaço para
construirmos novas linguagens. Para continuarmos a ser revolucionários.
Esta saída da visão clássica permitirá novos discursos, claramente
híbridos, claramente diferentes dos existentes, claramente destruidores
de certos discursos de poder histórico, estrutural, institucional ou
outro. É o espaço para novas e inovadoras retóricas.
Assumirmos
que o poder tem um discurso que nos minimiza, que não progrediu com a
evolução das nossas profissões, que é preconceituoso, que legisla como
quer, que cria regras à sua maneira, que é violento e arrogante para os
mais fracos porque aritmeticamente menores. O discurso traduzido em
atitudes, na forma como nos ignoram, como nos excluem da equação em
variados projetos mostra que a iniquidade é a supremacia de certas
classes. Nós estamos legitimados pelas nossas graduações e somos
incontornáveis, presentes em todo o lado nos sistemas de saúde, mas não
temos direito a fazer parte da maioria dos projetos. Este vigor de
outras classes perpetua as relações de poder que começaram com a noção
de estado e de hospital, que vêm do século XVIII.
É hora de não
perdermos esta oportunidade. É importante ler o passado não com excesso
de exaltação, mas desmontando passo a passo os enunciados. Desconstruir
sem minimizar designações anteriores como preparadores, ajudantes,
auxiliares, paramédicos, técnicos. O nosso futuro, de diagnóstico e
terapêutica, deve ser enriquecido com todas as áreas, digo as "soft" e
as "hard sciences", não fechando a porta a nenhum saber cientifico, no
processo de consciencialização, que chamo a "virada dos graduados das
áreas de diagnóstico e terapêutica" ("graduated from the areas of diagnosis and therapeutics turn"), conceito resgatado ao filósofo Richard Rorty, da sua obra "Linguistic Turn".
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mariagoulaorocha@gmail.com
* Técnica superior das áreas de diagnóstico e terapêutica
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
14/06/19
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