Fraude nos Municípios
"Poucas pessoas iniciam as suas carreiras com o objectivo de se tornarem mentirosas, impostoras e ladras. No entanto, demasiadas acabam por ter esse destino”
Não
poderia haver melhor forma de iniciar o novo ano: escrever sobre fraude!
Não porque me agrade saber que ela existe, mas sim porque acredito que o
silêncio em que ela se move deve ser quebrado.
Num contínuo
diário vamos, todos nós, assistindo à divulgação de novos casos de
fraude pois muito se tem dito e escrito sobre corrupção, crime de
colarinho branco, conflito de interesses, extorsão, fraude fiscal (…),
tornando-se percetível o quão pernicioso é o fenómeno, bem como a
gravidade das consequências destes crimes para todos nós. Na verdade,
este é um fenómeno amplamente divulgado nos meios de comunicação social,
essencialmente em virtude dos protagonistas envolvidos, do volume dos
montantes atingidos e do interesse público que terá essa divulgação.
Contudo, para além do que é divulgado pela comunicação social, pouco
mais é sabido.
Sempre que se discute sobre este fenómeno (e
refiro-me à fraude de forma alargada) diversas direções podem ser
seguidas: as motivações individuais que lhe subjazem, as suas
consequências, os agentes envolvidos, o local onde ocorre (setor público
e/ou privado), as leis que o limitam, entre outras. Diversos e extensos
podem ser os discursos que incluem temas como a fraude e a corrupção,
sendo estes conceitos, por si só, capazes de gerar uma profunda
dissertação.
A fraude no setor público ocorre, quase sempre, com a
“ajuda” do setor privado, desenvolvendo-se uma teia de tal forma
complexa que muitas das vezes, até por questões processuais, se torna
impossível “fazer justiça”. É um fenómeno difícil de combater e muito
mais difícil, quiçá impossível, de extinguir, por conseguinte
deveria assumir-se como uma prioridade para a investigação criminal.
Apesar da fraude no setor público estar muitas vezes associada ao setor
privado, o nosso interesse, enquanto contribuintes, recai sobre o setor
público. Sendo certo que a fronteira que separa a fraude do setor
público e do privado é ténue e difícil de traçar.
(In)
Conscientemente, acreditamos que a grande maioria dos funcionários
públicos, bem como os seus dirigentes são honestos, e trabalham árdua e
diariamente no sentido de tornar melhor a vida dos cidadãos. No entanto,
existe sempre um pequeno grupo que acaba por assumir más opções. Neste
grupo é possível encontrar indivíduos pertencentes a qualquer
instituição pública, nomeadamente hospitais, tribunais, instituições das
forças de segurança, câmaras municipais.
Importa nesta análise seguir uma direção: A FRAUDE NOS MUNICÍPIOS
E
aqui novamente se destaca o papel da imprensa, colocando os municípios
frequentemente no centro das atenções sempre que esta problemática é
notícia. Diversos casos têm sido constantemente divulgados, debatidos e
escrutinados pelos órgãos de comunicação social.
- As recentes
descobertas que envolvem a anterior gestão da CM vila Nova de Gaia, em
referência a avultadas somas de indemnizações pela compra de terrenos,
desvios de dinheiro, …, uma gestão ruinosa;
- O sucedido na CM de
Felgueiras, e todos os acontecimentos protagonizados pela autarca
Fátima Felgueiras (um suposto desvio de fundos para o clube de futebol,
supostas fraudes em licenças de loteamentos, suposto “saco azul”, …);
- Os consecutivos fait-divers do Major Valentim Loureiro enquanto dirigente máximo da CM de Gondomar
(suposta utilização de indevida de fundos comunitários através de um
esquema de faturas falsas, suposto branqueamento de capitais, suposta
fraude fiscal,...
A lista, quer de agentes, quer de atos não
pararia por aqui, pois, em certa medida, a comunicação social alerta-nos
para os casos que envolvem figuras mais mediáticas, uma seleção
editorial que procura alargar o leque das audiências. No entanto, com
toda a certeza, os comportamentos fraudulentos não serão todos da
responsabilidade dos topos da hierarquia, muitas vezes alheios ao que se
passa. Neste sentido seria de todo fundamental realizar recolhas
sistemáticas de dados sobre comportamentos fraudulentos perpetrados
pelos municípios, envolvendo todos os seus funcionários. Para
posteriormente se proceder à sua análise, tirar conclusões e divulgar
resultados.
Atualmente, o cidadão já se interessa pelas contas
públicas (principalmente se isso se reflete no seu orçamento pessoal), o
que obriga os governos à prestação de informações fidedignas e
imparciais, recolhidas com método. Seria fundamental aceder a dados mais
concretos e rigorosos do que os difundidos pelos media.
À semelhança do que se passa em diversos países da Europa, as
instituições públicas deveriam ser sujeitas a processos metodológicos
que avaliassem os níveis de fraude/corrupção das mesmas. A título de
exemplo, na Holanda existe uma preocupação em perceber claramente qual o
ponto de situação em que vivem as instituições públicas ao nível da
fraude.
O objetivo é a recolha de dados que permita perceber a
extensão do problema da fraude nas instituições públicas. Não se afigura
tarefa fácil: ambiguidade dos conceitos, dificuldades na
operacionalização, custos elevados associados ao trabalho de campo,
limitações comuns às investigações das fraudes no setor privado. Mas
como já alguém disse Não é por as coisas serem difíceis que nós não ousamos, é por nós não ousarmos que elas são difíceis.
A
complexidade surge logo com a ambiguidade dos conceitos, a forma como
definimos determinada palavra conduz-nos a diferentes resultados. Das
diversas definições de Fraude releva a seguinte síntese: todo
o ato intencional de pessoas, individuais ou coletivas, perpetrado com
logro, e que causa, efetiva ou potencialmente, vantagens para alguns ou
danos a outros e que violam as boas práticas sociais, a ética, ou a lei.
As vantagens ou os danos têm uma expressão económico-financeira. Pode ainda considerar-se que o conceito de fraude engloba o de corrupção (qualquer que seja a forma que esta assuma).
Resulta
da definição escolhida perceber que existe um dano, que há quem é
gravemente prejudicado com os comportamentos fraudulentos! Ora, as
fraudes praticadas municipais acarretam danos e prejuízos para um amplo
número de indivíduos. A este grupo pertence todo e qualquer cidadão.
Consequentemente
é percetível que, não se distanciando dos outros tipos de crime
(tráfico de seres humanos, homicídio, violência doméstica, etc), a
fraude municipal também causa vitimas: TODOS NÓS.
Se por um lado
já há algum tempo que as vítimas assumem um papel fundamental no estudo
do fenómeno do crime em geral, por outro lado, as estatísticas oficiais
(dos casos que passam pelo sistema de justiça) já não são os únicos
dados utilizados nesses estudos. Na investigação criminal já é possível
contar com uma vasta metodologia, na qual se incluem os inquéritos de
delinquência autorrevelada (muitas vezes aplicados em escolas com
intuito de se perceber a dimensão dos comportamentos delinquentes – ou
não – dos jovens), ou os inquéritos de vitimização que se poderão
revelar fundamentais na prossecução da quantificação dos dados sobre a
fraude nos municípios. Com esta metodologia o objetivo principal seria
auferir o maior número de dados sobre a quantidade, tipo, diversidade,
frequência de casos de fraude relatados por munícipes.
A
existência de “cifras negras”, a desorganização das vítimas, a falta de
visibilidade das vítimas deste tipo de crime, bem como os danos sentidos
por elas mais do que justificam esta análise. Perspetiva já reconhecida
anteriormente, a promoção de estudos de vitimização contribuem para
clarificação do real número de vítimas, explicam os crimes não
reportados e ilustram as “cifras negras” do crime que existem entre as
estatísticas oficiais e as experiências das vítimas.
O ideal
seria recolher dados em função da perceção que a população tem sobre
fraude, quais os limites do poder político administrativo, bem como a
sua capacidade de oposição à fraude municipal. E assim tentar perceber
até onde se estende a anomia das populações relativamente a este tema.
Com as metodologias certas e os instrumentos adequados os dados poderiam ser recolhidos de distintas formas:
Internamente
- informações dos funcionários respeitantes ao seu próprio
comportamento fraudulento, relatórios dos trabalhadores sobre
comportamentos fraudulentos que tenham assistido no seu ambiente de
trabalho, investigações internas sobre atos de corrupção,…
No
exterior – casos de corrupção descritos na comunicação social, aceder a
investigações criminais que tenham ocorrido, Informações sobre a
“reputação” da corrupção aos olhos dos cidadãos (– Talvez associando ao
Índice de transparência),…
É urgente terminar com a escassez de
informações rigorosas sobre as fraudes municipais, é urgente avançar com
estudos metodológicos sérios que se sobreponham aos casos avançadas
pelos órgãos de comunicação social, é urgente dar aos autarcas
instrumentos de investigação que lhes permita refutar o clima de
desconfiança que paira na sociedade portuguesa.
Os
autarcas do nosso país deveriam, à semelhança do que já é feito noutros
países, dar início a uma investigação séria, imparcial e de elevado
rigor científico que permitisse aos respetivos munícipes perceber a real
situação em que se encontra o poder local.
É necessário
interiorizar que a fraude que envolve funcionários públicos (seja qual
for o lugar que ocupe na hierarquia das instituições) arruína a
confiança pública, distorce as relações entre os indivíduos e a
confiança que as solidifica, deixando pelo caminho elevados desperdícios
monetários. Os comportamentos corruptos fazem aumentar a assimetria
da informação e falseiam a concorrência económica, transferindo
rendimento da sociedade para defraudadores e conluiados, degeneram o
suporte ético da vida em sociedade, agravam as desigualdades sociais e
as injustiças. Simultaneamente estas consequências manifestam-se no
quadro das atribuições dos órgãos de direção municipal: utilização da
propriedade pública, do dinheiro ao imobiliário, prestação de serviços
às populações locais, influencia as condições de vida e inserção
ambiental.
Sendo o poder local a mais próxima manifestação
dos cidadãos, todas as irregularidades que resultam das fraudes
enfraquecem a confiança entre as populações e os Estados que formalmente
os representam.
A crer na sabedoria popular que afirma que quem não deve não teme,
iremos com certeza assistir a um nova forma de encarar a investigação
da fraude municipal. Certamente será revestida de mais seriedade e
rigor.
Numa época que tanto se debate acerca do OE, de privatizações, de
bancos e banqueiros, porque não iniciar a investigação e posterior
intervenção ao nível local, ao nível daquilo que mais próximo possuímos:
o nosso município.
IN "VISÃO"
21/01/16
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