HOJE NO
"DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
Maria Simões.
A palhaça que foi silenciada
num campo de refugiados
Voluntária em missão na Macedónia foi proibida de fazer trabalho artístico. Mas a sua Luna esteve sempre lá
No
meio do frio e da paisagem desolada, das tendas sem aquecimento e dos
milhares de pessoas exaustas sempre a chegar, às vezes de sandálias nos
pés e roupa ensopada, no meio das condições brutas no campo de
refugiados de Gevgelija, na Macedónia, Maria Simões, palhaça de
profissão, recorda momentos únicos, luminosos. "Se há memória boa que
guardo daqueles dias é a quantidade de gargalhadas das crianças, quando
me punha a brincar com elas", conta. Mas Luna, a sua personagem de
palhaça, ficou sempre clandestina, porque as autoridades do campo
decidiram proibir os narizes vermelhos, as cabeleiras e as roupas
irreverentes dos palhaços.
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"Fui
impedida de trabalhar como palhaça, mas aprendi que consigo fazer o meu
trabalho sem o nariz e sem as roupas, e isso vale tudo", diz Maria
Simões.
Foi entre 5 e 13 de dezembro
que esteve no campo de Gevgelija, na Macedónia. Era uma dos 17
voluntários da missão da associação portuguesa Famílias como as Nossas.
"Fui acompanhando no Facebook as atividades deles e quando decidiram
avançar para a missão disponibilizei-me de imediato."
Não
foi tudo simples.
Cada voluntário tinha de custear as suas próprias despesas - viagem, alimentação, alojamento. Maria Simões chegou a pôr de parte a ideia mas com a ajuda do companheiro, da família e dos amigos, acabou por reunir a verba necessária. Iria participar na distribuição de roupas aos refugiados, claro, era esse o principal objetivo da missão, mas na mala, além dos 35 quilos de roupa que cada um podia transportar, guardou também os seus adereços de palhaça. Estava decidida a levar um pouco de riso e de alegria àquele lugar despojado de quase tudo.
Cada voluntário tinha de custear as suas próprias despesas - viagem, alimentação, alojamento. Maria Simões chegou a pôr de parte a ideia mas com a ajuda do companheiro, da família e dos amigos, acabou por reunir a verba necessária. Iria participar na distribuição de roupas aos refugiados, claro, era esse o principal objetivo da missão, mas na mala, além dos 35 quilos de roupa que cada um podia transportar, guardou também os seus adereços de palhaça. Estava decidida a levar um pouco de riso e de alegria àquele lugar despojado de quase tudo.
Amiga
da palhaça espanhola Angi Amaia, que é membro da organização Palhaços
sem Fronteiras, Maria lembrou-se de a desafiar a participar na viagem à
Macedónia. Angi aceitou. Estava a chegar de África, de uma missão na
Etiópia, e nem hesitou.
Tal como
aconteceu com a Luna de Maria Simões, a personagem de Angi teve depois
de se manter clandestina, mas o certo é que naqueles dias frios de
dezembro houve muitas gargalhadas em Gevgelija.
"As
crianças riam, quando brincávamos com elas e fazíamos palhaçadas, mesmo
sem o nariz e as roupas, e riam os pais, e choravam comovidos e
felizes, olhavam para nós, agradecidos por verem os filhos rir no meio
daquela desolação", recorda Maria Simões.
"Palhaços não são bem-vindos"
O
primeiro embate foi logo à chegada. Os voluntários da associação
Famílias como as Nossas deveriam ter começado logo a trabalhar na
distribuição de roupas, era isso que estava combinado com a ONG local, a
NUN, com a qual a missão tinha sido coordenada.
"Mas
nesse dia o chefe militar do campo quis que nos apresentássemos e
decidiu que tínhamos de fazer turnos em roulement, ao longo das 24 horas
do dia. Tivemos de nos dividir em três grupos para estarmos à vez no
interior do campo, foi uma coisa de um enorme autoritarismo", recorda
Maria Simões.
Antes mesmo de chegarem
ao destino, ela e Angi já tinham percebido que dificilmente conseguiriam
fazer os seus números de palhaças. "A Angi soube que um grupo dos
Palhaços sem Fronteiras que tinha estado semanas antes na região, num
outro campo, logo ali a 500 metros, do outro lado da fronteira, na
Grécia, tinha sido obrigado a sair e convidado a não voltar mais."
Tinha
havido tumultos no campo grego, em Idomeni, e sem mais explicações os
Palhaços sem Fronteiras foram postos fora. Ainda assim, elas estavam
decididas a tentar a sua sorte. Ao segundo dia, porém, quando iam a
entrar no campo de Gevgelija para iniciar a distribuição das roupas e
fazer o mais que fosse necessário - prestar informação, ouvir,
encaminhar os mais desorientados ou pôr as pessoas a rir -, perceberam
que não ia mesmo ser possível.
"A
polícia fez uma revista completa ao que levávamos connosco e quando
viram os narizes e as cabeleiras disseram logo: "Clowns are not
welcome", os palhaços não são bem-vindos." Maria e Angi tiveram de
recorrer à imaginação e à sua experiência de anos para fazer as coisas
de outra forma.
Mesmo sem o nariz vermelho, "Luna esteve sempre lá", diz Maria Simões. Esteve nas brincadeiras com as crianças, na forma como às vezes distribuía cachecóis e luvas aos mais pequenos, com truques e palhaçadas, ou na maneira como entregava umas calças gigantes e um par de sapatos descomunais, os únicos que havia a certa altura, porque tudo o resto já tinha acabado. As calças não serviam a ninguém, mas quando ela as entregava, com um inesperado sorriso maroto de Luna, ouviam-se as gargalhadas. O ambiente distendia-se, os rostos, até aí carregados, animavam-se por momentos.
"Vou para Portugal"
Na
fronteira com a Grécia, Gevgelija é um campo de trânsito. Quem ali
chega, vindo da Grécia, ou por outras rotas, não fica, de um modo geral,
mais de 24 horas, embora isso dependa da frequência dos comboios, para
rumar à Sérvia. Apanhar lugar num comboio, que nunca se sabe quando
chega nem quando vai partir, é por isso dos momentos de maior tensão.
Maria Simões recorda um desses episódios.
Na
multidão ansiosa, um rapaz de uns 20 anos e com um embrulho nos braços
chamou-a: "Miss, miss." Percebeu depois que o embrulho era uma criança,
que ele lhe passou para as mãos. "Tinha, talvez, ano e meio, e
compreendi que ele só queria descansar um pouco os braços." Conversavam,
Maria ouviu-o e falou-lhe de Portugal, disse-lhe que também acolhe
refugiados - "eles desconhecem isso", garante.
À
distância, na multidão compacta, a mãe do bebé tentava comprar os
bilhetes, e conseguiu. Depois, a custo, no meio de tanta gente,
reuniram-se os três, entraram no comboio. "Meia hora depois, ele veio à
minha procura, disse-me: "Vou para Portugal", e voltou para o comboio",
conta Maria. "Não sei o nome dele", remata.
Luna há de contar no palco algumas destas histórias.
* Um exemplo de como a desumanidade pode ser fintada por pessoas boas. Por isso gostamos e respeitamos os palhaços.
* Um exemplo de como a desumanidade pode ser fintada por pessoas boas. Por isso gostamos e respeitamos os palhaços.
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