ANTEONTEM NO
"PÚBLICO"
"PÚBLICO"
Câmara de Cascais pagou subsídios mediante facturas falsas
apresentadas por juiz
A Associação Portuguesa de Coleccionadores de Armas (APCA), presidida
por um prestigiado juiz da Relação do Porto, apresentou à Câmara de
Cascais facturas inflacionadas para receber um subsídio superior em
30.000 euros àquele que lhe era devido.
O presidente da associação, que dirige também a Aldeias de Crianças SOS
Portugal, confirma a sobrefacturação e afirma que tudo foi feito com a
concordância da câmara. A autarquia, que esta semana aprovou a
instalação definitiva da APCA no Forte dos Oitavos, não confirma nem
desmente.
RAUL ESTEVES |
Criada em 2005 e dirigida desde o início pelo juiz Raul
Esteves, um dos fundadores e presidentes do Movimento Justiça e
Democracia, a APCA inaugurou no final de 2009, no centro histórico de
Cascais, o denominado Museu Português da Arma. Instalado provisoriamente
num edifício alugado junto à esquadra da PSP, o museu foi montado com
uma subvenção negociada logo em 2005 entre o município e a nóvel
associação. O objectivo essencial do protocolo então celebrado consistia
na "preservação do património nacional de armaria, sua classificação e
apresentação pública".
Alterado em 2009 com um reforço de verba, o
documento previa a entrega à associação um subsídio "até ao montante
máximo de 145.000 euros", a pagar após entrega da "documentação
comprovativa das despesas efectuadas" com a criação do museu. Na
sequência da realização dos trabalhos necessários à exibição do seu
espólio de armas de fogo, cedido por alguns dos seus 15 sócios
licenciados como coleccionadores e por entidades policiais e militares, a
APCA apresentou os respectivos comprovativos de despesa à autarquia,
com vista ao seu reembolso.
PRESIDENTE DA CÂMARA |
A acompanhar as duas facturas, uma de
100.000 euros e outra de 45.000 euros (com IVA), emitidas em nome da
associação pela empresa por si contratada (Esquinas & Normas), foram
entregues os descritivos com os valores dos trabalhos feitos e
equipamentos adquiridos. Perante essas facturas, a Câmara pagou os
145.000 euros - não se apercebendo de que havia nos descritivos grandes
diferenças entre os valores atribuídos a certos trabalhos e aqueles que
constavam de outras facturas antes apresentadas e depois substituídas
pelas que foram pagas. As primeiras, da mesma empresa, datavam do fim de
2008, altura em que a firma ainda nem tinha sido registada.
Facturas falsas
As
contas da Esquinas & Normas revelam porém que a empresa, criada no
início de 2009 pela desenhadora de interiores Maria Carlos, uma
companheira de lides políticas e profissionais de Raul Esteves, mostram
vendas num total muito inferior aos 145.000 euros facturados à APCA e
pagos pelo município. No total, declarou às Finanças, até ao fim de
2010, uma facturação que ronda os 115.000 euros. E a gerente, e única
proprietária, disse ao PÚBLICO, por escrito, que foi esse valor, 115.000
euros, que associação lhe pagou.
FORTE DOS OITAVOS |
Perante a discrepância entre o
que consta das facturas e o que diz ter recebido, Maria Carlos respondeu
que tinha devolvido à associação, através de uma nota de crédito, o
valor de 25.103 euros mais IVA, o que corresponde, por arredondamento,
aos 30.000 euros que faltam nas suas contas. A ser assim, e embora não
se perceba a razão de terem sido facturados 145.000 euros em vez de
115.000, Raul Esteves teria de ter devolvido à Câmara os 30.000
indevidamente recebidos. Nos termos do artº 256 do Código Penal comete o
crime de falsificação quem, com intenção de obter benefício ilegítimo,
"fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus
componentes facto juridicamente relevante".
Sucede, todavia, que
na documentação arquivada na Câmara de Cascais não há qualquer
referência à devolução de tal montante. E mais: Raul Esteves, que este
mês passou das Varas Criminais de Lisboa para a Relação do Porto,
confirmou ao PÚBLICO, também por escrito, que a "APCA recebeu da Câmara
de Cascais 145.000 euros e pagou [à Esquinas & Normas] 115.000 euros
(...) sendo o valor não gasto, conforme acordado com a Câmara de
Cascais, utilizado no museu definitivo".
Ou seja, o presidente da associação diz que o
município foi conivente com uma manobra destinada a entregar à
associação mais 30.000 euros do que aquilo que gastou, aceitando
comprovativos que sabia serem falsos. Solicitado anteontem a comentar
esta acusação, o presidente da autarquia, o social-democrata Carlos
Carreiras, nada respondeu.
Consultas secretas
A firma
Esquinas & Normas, que o próprio presidente da APCA disse ter sido
criada "sobretudo para fazer o museu" e que não fez mais nada pelo menos
até ao fim de 2010, foi contratada sem que se conheça qualquer consulta
a outras empresas. Raul Esteves afirma, contudo, que foram auscultadas
outras firmas para fazer o trabalho e explica quem é que tratou dessa
prospecção: "A consulta ao mercado efectuada desde 2004/2005 foi
coordenada pela empresa acima referida" - precisamente a Esquinas &
Normas à qual o trabalho foi adjudicado.
O magistrado salienta
também que a proprietária desta empresa já tinha feito um estudo prévio
para o museu em 2004 (antes da criação da associação), através de uma
outra empresa de que era sócia, e que foi a "relação de confiança
existente e a informação classificada já transmitida" que levou a
direcção da associação a adjudicar-lhe o trabalho. Concretizando, Raul
Esteves escreve mesmo que "as rigorosas condições de confidencialidade",
a que obedece "por força de lei" a criação de um museu de armas de
fogo, determinaram que o trabalho fosse "entregue aos mesmos técnicos
que iniciaram os estudos" anos antes.
Solicitado a facultar ao
PÚBLICO o orçamento apresentado pela empresa antes da adjudicação, o
juiz responde apenas: "A especificidade própria do museu e a sua
finalidade - exposição de armas de fogo - obrigavam à criação de
elevadas condições de segurança, não só físicas como electrónicas, que
não serão divulgadas".
O museu funcionou desde Outubro de 2009 na
Travessa do Poço Novo, tendo sido encerrado em Junho por ter terminado o
contrato de arrendamento do espaço. A Câmara de Cascais decidiu, por
unanimidade, na passada segunda-feira, ceder à APCA uma parte do Forte
dos Oitavos, uma fortaleza do século XVII classificada como Imóvel de
Interesse Público, para ali ser instalada a sede da associação e o seu
museu.
Um juiz que "sempre quis mudar o mundo"
Com 51
anos, o juiz Raul Esteves assume-se como alguém que "sempre quis mudar o
mundo", sendo essa a sua principal explicação para ter pedido ao
Conselho Superior da Magistratura (CSM), em Maio de 2008, uma licença
sem vencimento de longa duração.
O seu principal objectivo,
afirma, era o de participar na criação do Movimento Mérito e Sociedade
(MMS), partido do qual se tornou logo presidente do Conselho Geral e da
Mesa do Congresso e que entretanto desapareceu. Pouco depois passou a
trabalhar como administrador de várias empresas imobiliárias e do sector
automóvel (grupo Parquic) do vice-presidente do MMS, Francisco
Oliveira.
No partido liderou a lista de Coimbra às legislativas
de 2009, tendo como número três Maria Carlos, que já tinha contratado
para a APCA e levou depois para as Aldeias SOS (ver outros textos).
Paralelamente ao grupo Parquic inscreveu-se na Ordem dos Advogados e
criou uma firma de polimento de automóveis (Specialdream) de que se
manteve como gerente durante mais de um ano após o seu reingresso na
magistratura, em Maio de 2011, apesar de a lei o proibir. Esteves disse
ao PÚBLICO que quando retomou o lugar de juiz renunciou a todos os
cargos nas empresas - então à beira da falência e nas quais diz que,
sobretudo, "trabalhava para o partido" - e que foi o seu advogado que se
atrasou a registar esse facto.
No caso da Specialdream, a renúncia só foi
registada depois de o PÚBLICO ter confrontado o CSM, através do juiz
José Manuel Duro, com essa situação. Esteves foi um dos 225 juízes que
em 1999 criaram o Movimento Justiça e Democracia de que foi depois
presidente. Este movimento tem estado na origem de todas as listas
vencedoras das eleições para o CSM e para a Associação Sindical dos
Juízes Portugueses.
* PORRA DE JUSTIÇA
NOTÍCIA DE HOJE
- IN "NOTÍCIAS GRANDE LISBOA"
A Câmara Municipal de Cascais suspendeu as relações com a Associação Portuguesa de Colecionadores de Armas. O presidente da Câmara de Cascais, Carlos Carreiras, quer esclarecer alegadas irregularidades financeiras que poderão ter lesado a autarquia em 30 mil euros.
A decisão do autarca de Cascais surge no seguimento de uma notícia (aqui) divulgada no domingo pelo jornal Público que dava conta de que a Associação Portuguesa de Colecionadores de Armas apresentou à câmara faturas inflacionadas para receber um subsídio superior em 30 mil euros àquele que lhe era devido.
Perante a notícia, Carlos Carreiras disse esta segunda-feira à agência Lusa que a suspeita, a confirmar-se, é “muito grave” e, por isso, decidiu “suspender de imediato todo o relacionamento institucional” com a associação.
No início deste mês, a Câmara de Cascais aprovou, em reunião de executivo, a instalação definitiva da sede da APCA no Forte dos Oitavos, uma decisão que Carlos Carreiras vai agora também suspender.
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