05/07/2019

HELENA GARRIDO

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Um Estado em (quase) 
estado de coma

Um colapso financeiro resolve-se com dinheiro. Um colapso no funcionamento do Estado é um problema muito mais difícil de resolver e tem custos muito mais elevados.

Há uma famosa história, que ilustra os limites da disciplina financeira e que se ajusta bem à nossa política orçamental. Metáfora para a reputação – ao que parece injusta – de avareza dos escoceses, conta-se que quando o cavalo do escocês aprendeu a não comer, morreu. Os excessos que tivemos na política orçamental na era da troika, por via do corte de salários da função pública e aumento de impostos, assumem agora a faceta de excessos de cortes do lado da despesa de funcionamento do Estado.

Estamos a prosseguir, e bem, o caminho de rigor orçamental iniciado em 2008, ainda antes do pedido de apoio financeiro ao FMI e à União Europeia. A primeira fase dessa estratégia passou por violentas reduções dos salários da função pública e violentos aumentos de impostos, com o impacto conhecido de queda da actividade económica, tudo indica que para além do que seria necessário. Cada euro de corte ou aumento de impostos contribuiu menos para a redução do défice por via do mergulho que provocou na economia.

Esta segunda fase de política orçamental contraccionista apoiou-se mais na redução das despesas de funcionamento do Estado e no aumento de impostos que são menos visíveis – veja-se, por exemplo, as alterações que se fizeram à tributação dos recibos verdes. Do ponto de vista da política de gestão de expectativas e do apoio popular é uma estratégia mais eficaz.

Enquanto se diz que acabou a austeridade, revertendo os cortes salariais na função pública e os aumentos mais visíveis de impostos, como a sobre-taxa de IRS, corta-se violentamente nas despesas de funcionamento e no investimento de reposição de equipamentos. Restringe-se violentamente as contratações, ao mesmo tempo que se anuncia a integração de todos quantos estão no Estado a recibos verdes e se reduz o horário semanal de trabalho. Limita-se violentamente a margem de manobra dos dirigentes do Estado, incluindo as empresas públicas, ao mesmo tempo que se exigem resultados. Adiam-se investimentos de reposição de equipamentos, como é bastante visível no caso dos transportes, ao mesmo tempo que se fazem descontos muito significativos no preço dos passes que são impossíveis de suportar pelo Estado, como o tempo o demonstrará.

Os alertas, que aqui foram feitos, para os riscos desta estratégia para o funcionamento do Estado foram sendo desvalorizados com as habituais acusações de se estar contra o Governo. Neste momento tornou-se praticamente impossível disfarçar que o Estado está em colapso operacional.

A estratégia seguida por Mário Centeno teria menos custos para os serviços públicos se, ao mesmo tempo, fossem concretizadas mudanças de organização e estrutura do Estado. É o caso da Saúde. O grave erro de reduzir o horário semanal de 40 para 35 horas teve efeitos especialmente nefastos no sector da Saúde e somou-se a problemas organizacionais e ausência de mudanças, sucessivamente adiadas. O caso das maternidades, que vão encerrar as urgências rotativamente este Verão, são um exemplo de falta de recursos mas também de adiamento de reformas. Era Correia de Campos ministro da Saúde quando se tentou racionalizar esta área e, só hoje, em colapso, se caminha para o encerramento das urgências da Maternidade Alfredo da Costa que, já na altura, os especialistas entendiam que devia fechar.

O caminho que o Governo fez é, até agora, um sucesso financeiro. O défice reduziu-se para valores historicamente baixos e estamos a conseguir baixar a dívida pública de forma a ficarmos mais abrigados de uma futura tempestade financeira. Mas a estratégia seguida está a afectar negativamente e seriamente os serviços públicos básicos, com especial relevo para a Saúde. Um custo que pode ser demasiado elevado. Um colapso financeiro resolve-se com dinheiro. Um colapso no funcionamento do Estado é um problema muito mais difícil de resolver e tem custos muito mais elevados. Podem ser invisíveis durante uns tempos, mas não são invisíveis todo o tempo.

Pode-se “aprender a não comer” por falta de dinheiro até a um determinado ponto e se formos livres para procurar comida podemos fazê-lo, individualmente. Como muitos de nós o fez no passado, procurando individualmente oportunidades quando perdeu o emprego ou viu o seu salário ser cortado. Mas o Estado, por si só, não consegue ir buscar dinheiro sem ser ao Tesouro. Podemos pagar caro esta estratégia popular de redução do défice público. Esperemos que ainda se vá a tempo de não matar o doente (ou o cavalo) com a dieta.

IN "OBSERVADOR"
01/07/19

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