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Os filtros de uploads
são fascistas
Ainda não consigo perceber como é que um governo suportado por um partido que teve como dirigentes Mário Soares, Jorge Sampaio, ou António Guterres propôs que os uploads de mais de 500 milhões de habitantes da UE passassem a ser sujeitos uma vistoria prévia que é apenas a antecâmara da censura automatizada
Senhor primeiro-ministro de Portugal,
Um
dia virá em que uma qualquer organização movida por um elevado estado
de pureza lhe há de mover um processo por atentado contra o ecossistema
sempre que colocar um cravo na lapela. O meu grau de pureza é muito
inferior ao propalado por essas organizações, e obviamente não tenho
pretensões a ter nome de santo ou de rua, mas até consigo compreender a
lógica da coima que eventualmente lhe venham a aplicar num futuro
próximo: que culpa têm os cravos pela ditadura que se viveu até 24 de
abril de 1974? Que sentido faz o sacrifício de flores inocentes para
celebrar a liberdade? Por que é que não se começa a festejar o 25 de
abril com cravos de papel reciclado que podem ser guardados de ano para
ano ou até emprestados a outras pessoas quando alguém deixa de acreditar
na liberdade?
Os
argumentos têm uma lógica quase matemática, mas, lamento desapontar
santidades, gurus espirituais e donos do bem absoluto, a razão que me
leva a escrever esta carta aberta a um governante é outra: senhor
primeiro-ministro, é verdade que foi o governo português que propôs o
uso de filtros de uploads durante a redação da futura diretiva europeia
dos direitos de autor?
Até
acredito que o dr. António Costa tenha mais em que pensar ou que ache
estas coisas dos computadores e da Internet uma maçada que só interessa a
uns tipos com uns óculos foscos que têm a mania de apertar a camisa até
ao último botão, mas deixe-me dizer-lhe que a questão é suficiente para
o levar a reconsiderar se é merecedor de colocar um cravo na lapela no
próximo 25 de abril. É que simplesmente não é possível continuar a
celebrar a liberdade num dia e defender a amputação da liberdade em
todos os 365 dias de todos os anos vindouros. É uma incongruência bem
mais perigosa que uma potencialmente bem-intencionada proibição do
sacrifício de cravos por questões de ambientais – e, pior que isso,
sinto vergonha de saber que o governo do meu país foi um dos proponentes
do uso de filtros que poderão vir a inspecionar previamente os
conteúdos que os internautas colocam no Facebook, no Dropbox, no
Twitter, no Instagram, ou no site da escola secundária ou até no Portal
do Governo.
Ainda
não consigo perceber como é que um governo suportado por um partido que
teve como dirigentes Mário Soares, Jorge Sampaio, ou António Guterres
propôs que os uploads de mais de 500 milhões de habitantes da UE
passassem a ser sujeitos a uma vistoria prévia que é apenas a antecâmara
da censura automatizada. Lamento, por muito que me esforce, não
percebo, e acredite que desta vez não é a minha limitada inteligência
que me impede de perceber – mas sim a iniquidade de um artigo numa
diretiva europeia que faz prevalecer um direito económico de uma
indústria sobre os direitos mais elementares dos cidadãos.
Não
costumo publicar opiniões sobre notícias que escrevo para evitar a
confusão entre opinião e informação, mas desta vez seria mau cidadão se
não abrisse a exceção. Porque é uma liberdade elementar que está em
causa. E é no desrespeito das liberdades mais pequenas que se revelam as
ditaduras mais atrozes.
Em
liberdade, os pensamentos, as ideias ou os conteúdos dos cidadãos não
são vistoriados antes de serem publicados ou proferidos perante outras
pessoas. Em liberdade, só depois de publicar o que não devia é que o
cidadão é interditado e/ou punido. A calúnia, a mentira, a xenofobia, e
outras enormidades que as redes sociais regurgitam todos os dias
continuam por aí - mas as autoridades nacionais dos estados democráticos
só as bloqueiam depois de publicadas. Sem este pormenor não há
liberdade nem democracia que resistam.
Pois
bem, Mark Zuckerberg teve de ir a comités parlamentares em Estrasburgo e
Washington para explicar como é que uma rede social pode condicionar as
eleições de um país, mas, que me recorde ninguém se lembrou de impor ao
Facebook, por via legal ou política, filtros que bloqueiam discursos de
ódio. E depois dos holofotes mediáticos se desligarem, tudo continua
mais ou menos na mesma. O Facebook prometeu encontrar mecanismos que
evitam fugas de dados pessoais e até fake news, ao mesmo tempo que
mantém em funcionamento os filtros que impedem a publicação de imagens
de corpos nus. Nalguns casos, esta filtragem chega ao absurdo de impedir
a publicação de imagens de estátuas com corpos de humanos desnudados -
mas foi uma escolha da Facebook aplicar esse tipo de filtro. E fê-lo ao
abrigo da liberdade económica, que lhe permite determinar como é que uma
ferramenta que disponibiliza ao público pode ser usada. As pessoas que
não concordam com esta filtragem têm sempre uma opção: usar outra rede
social que não tenha este tipo de restrições.
Curiosamente,
a indústria da música e do cinema não teve de fazer aquela figura de
menino bem comportado apanhado a roubar os bolinhos da avó como Mark
Zuckerberg fez quando se desdobrou em desculpas perante os vários
deputados europeus. Bastou que três governos (um deles o português)
aprovassem em Conselho Europeu a tal emenda que dá pelo nome de artigo
13º e que prevê o uso de filtros de uploads, que só deixam publicar um
determinado link na Internet se a ferramenta automatizada que vier a ser
criada não detetar qualquer cópia pirata ou infração aos direitos de
autor.
Note-se
bem: até à data, nunca houve uma imposição legal e externa que leve à
aplicação de filtros que impedem que sites, apps e redes sociais
disseminem pornografia infantil, conteúdos neonazis, propaganda do
Daesh, sabotagem económica, ou fake news - mas uma parte do Parlamento
Europeu não parece ter prurido em levar em frente a aplicação de filtros
que impedem a ilegalidade antes de ser cometida, em nome dos direitos
de autor e no interesse de indústrias que, felizmente, souberam ganhar
importantes batalhas contra a pirataria e têm visto as suas receitas
crescer nos últimos anos (a indústria cinematográfica fechou 2017 com um
recorde de bilheteiras superior a 40 mil milhões de dólares, quase o
dobro dos 23 mil milhões de 2005; a indústria da música registou no
mesmo ano um crescimento anual superior a 8%).
Como
é que nenhum dos deputados que aprovaram em comissão parlamentar o 13º
artigo da futura diretiva questionou a legitimidade de um filtro que
opera de forma automática com base nas coordenadas fornecidas pelas
sociedades de gestão de direitos de autor é algo que me escapa.
Acredito
que todos esses eurodeputados tenham uma intenção tão louvável quanto
aquela que um dia nos impedirá de usar cravos em abril, mas também não
me admira nada que, para o público em geral, que apenas quer continuar a
distribuir links com os videoclipes da Rihanna ou até de temas de Miles
Davis cujos direitos de distribuição já caducaram, este artigo 13º seja
encarado como um enorme frete político a uma das mais poderosas
indústrias mundiais.
Entre
os dias 3 e 5 de julho, o plenário com os 750 deputados do Parlamento
Europeu será chamado a pronunciar-se novamente sobre a proposta de
diretiva europeia dos direitos de autor. Os críticos da diretiva
acreditam que podem travar o processo se conseguirem, pelo menos, 76
votos contra a atribuição de um mandato ao Parlamento Europeu para
fechar com a Comissão Europeia e o Conselho Europeu a redação final da
diretiva. Caso se registem 76 votos contra, todo o plenário de
eurodeputados poderá voltar a inserir alterações na futura diretiva.
Tal
como se encontra neste momento, o artigo 13º já não tem o mesmo estilo
impositivo, que resultou da proposta dos governos de Portugal, Espanha e
França. A comissão de assuntos jurídicos do Parlamento Europeu diluiu o
caráter de obrigatoriedade, recordando mais de uma vez a necessidade de
manter o equilíbrio entre direitos e garantias elementares e os
direitos dos autores e produtores de entretenimento – mas deixa o uso de
filtros de uploads como uma possibilidade, que pode tornar-se
obrigatória dentro da margem de manobra que costuma ser dada aos
estados-membros quando transpõem diretivas.
Não
sei se o sr. primeiro-ministro leva à letra mais estrita os direitos de
autor ou se a futura diretiva vai ter o tratamento parcimonioso que
mereceram a Diretiva de Cibersegurança ou o Regulamento Geral de
Proteção de Dados (RGPD) que já rebentaram os prazos de transposição
para as leis nacionais, mas tenho a certeza de que é possível ser contra
a pirataria ao mesmo tempo que se é contra os filtros de uploads.
E
também não tenho dúvidas de que é chegada a hora de as plataformas que
operam na Internet começarem a partilhar receitas com a indústria da
música e dos filmes. Mas esse é um acordo que tem de ser feito algures
entre Hollywood e Silicon Valley, entre Sony e Facebook, ou Warner Bros e
Google, e não à custa de direitos elementares dos cidadãos europeus.
Portugal
foi um dos pioneiros na aplicação de memorandos antipirataria que
bloqueiam sites piratas, depois de identificados pela indústria e
devidamente vistoriados pela Inspeção Geral Atividades Culturais (IGAC).
Podia ser populista e dizer que estou contra esse bloqueio prévio só
para alimentar a esperança de muitos internautas que estão desejosos de
verem os conteúdos que quiserem sem limites e sem custos, mas não
estaria a ser justo nem razoável.
No
caso dos bloqueios, há uma entidade gerida pelo Estado que verifica que
há direitos de autor que foram violados; há uma lógica quantitativa que
é tida em conta e que impede que se faça o bloqueio de todo um site só
porque contém um link pirata avulso ou inadvertido; nenhuma das
comunicações dos internautas é vistoriada previamente; e mais importante
que tudo: o bloqueio não é aplicado de forma automática por um
algoritmo que é definido, eventualmente em reuniões à porta fechada,
entre uma rede social e uma sociedade que representa autores,
distribuidores ou produtores (mas que curiosamente não pode fazer valer
os direitos de todos os autores e produtores que não são seus
associados).
Haverá
quem ache que o direito de livre circulação na Internet ficou
prejudicado com o memorando antipirataria português, mas só quem nunca
visitou os sites bloqueados (que em 99% dos casos apenas se limitam a
fazer dinheiro com os conteúdos alheios) é que poderá achar que se trata
de uma medida desproporcional ou que é legítimo retirar às pessoas ou
às empresas o direito de decidirem como é que querem comercializar
aquilo que produzem.
O
site x não tem autorização para fazer streaming?, então bloqueia-se o
site, se se confirmar essa violação da lei. Neste exemplo que acabo de
dar, nem sequer a liberdade de expressão é colocada em causa – a menos
que consideremos que a liberdade de se apropriar das criações alheias é
também uma forma de expressão. (Algo me diz que quase todos os
defensores da cópia livre se tornam acérrimos defensores dos direitos de
autor quando lhes perguntam se se importam que alguém fique com o fruto
dos seus trabalhos sem ter de pagar nada em troca… é um belo exercício
que aconselho todos fazerem, antes de mandarem bitaites sobre a
liberdade de acesso aos bens culturais).
Nos
filtros de uploads, o caso é bem diferente: as comunicações do
internauta são sujeitas à vistoria dos filtros, independentemente de
disponibilizarem ou não músicas ou vídeos protegidos por direitos de
autor. Isso, sim, é tão perturbador como ter alguém nos CTT a ler as
cartas de todos remetentes em busca de excertos piratas das obras de
Agustina Bessa Luís ou Philip Roth. Não é suposto acontecer num regime
democrático. E nem sequer em nome dos direitos de autor. Até porque a
rábula é conhecida: hoje são os direitos de autor – e amanhã serão as
fotos com a Torre Eiffel porque também têm direitos de autor, e depois
serão as piadas de mau gosto porque ofendem os mais fracos, e depois os
poemas obscenos e eróticos porque há quem não goste do tema, e depois
serão as religiões estrangeiras porque são estrangeiras, e depois as
posições políticas estapafúrdias porque são fora do comum, e depois
outras posições políticas cheias de senso comum, porque não dão jeito ao
governo ou à elite económica, e por fim até os sites cor-de-rosa que
têm princesas serão bloqueados, mesmo que haja meninos e meninas que
querem ser princesas. Só para que se perceba onde é que esta mania da
justiça “bit por bit, byte por byte” vai acabar, aproveito para
recordar: as ditaduras nazis e comunistas também tinham a mania das
purezas e da depuração de palavras conspurcadas.
Tecnologicamente,
todas estas filtragens que mencionei acima são possíveis – e nalguns
casos são mesmo muito fáceis de fazer - , mas de nada adianta culpar a
tecnologia. Entregar a vistoria de uploads a um algoritmo será sempre
uma decisão de humanos. E essa é a única razão por que se pode dizer com
elevado grau de certeza que é uma decisão estúpida. Pelo que, no
próximo 25 de abril, quando o Parlamento Europeu previsivelmente já terá
aprovado a nova diretiva europeia para os direitos de autor, vou estar
atento ao que traz na lapela, sr. primeiro-ministro.
NOTA: os defensores do artigo 13º e dos filtros de uploads poderão criticar
este texto por não mencionar o artigo da futura diretiva europeia dos
direitos que obriga as plataformas tecnológicas a ressarcirem os meios
de comunicação social por cada link de notícias disseminado. Apesar de
ser igualmente polémico, não é por trabalhar num meio de comunicação
social que não faço uma única crítica ao artigo 11º neste texto. Esse
mesmo artigo 11º não põe em causa direitos fundamentais.
Apenas exige
que as plataformas tecnológicas que hoje exploram receitas publicitárias
à boleia dos textos produzidos por jornais, rádios e canais de TV
partilhem parte dos respetivos lucros. Também não considero correto
chamar ao artigo 11º uma taxa do link, como alguns críticos da diretiva
dizem, pois os custos têm de ser suportados pelas plataformas
tecnológicas e não pelos cidadãos.
IN "EXAME INFORMÁTICA"
29/06/18
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