12/12/2014

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ONTEM NO
"JORNAL DE NEGÓCIOS"


Quando o atraso nos pagamentos
 provoca a morte das empresas

 De acordo com um estudo recente publicado pela Comissão Europeia, que pretende aferir o impacto económico dos pagamentos em atraso em vários países europeus – com especial incidência na Itália, Grécia, Espanha e Portugal – a gravidade desta problemática atingiu proporções preocupantes ao longo da crise financeira de 2008. Todavia, e mesmo com algumas ligeiras melhorias, registadas nos dois últimos anos, a relação directa desta realidade com a taxa de mortalidade das empresas continua a constituir um enorme obstáculo, em particular para as economias mais vulneráveis

Os atrasos nos pagamentos entre empresas (B2B) e nas transacções entre o Estado e as empresas (G2B) possuem efeitos adversos no cash-flow das empresas, obrigando, na maioria dos casos e em particular no que respeita às de menor dimensão, a extensões de crédito a descoberto e ao aumento das suas necessidades de financiamento via empréstimos. Os atrasos nos pagamentos das dívidas comerciais têm igualmente um papel principal na sobrevivência das empresas, na medida em que a sua liquidez pode ser severamente afectada, forçando até, em muitos casos, à sua própria retirada do mercado. A importância desta questão tornou-se ainda mais relevante ao longo da crise económica e financeira na medida em que o acesso ao crédito foi significativamente restringido.
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A Comissão Europeia publicou, em Setembro último, um estudo que visa abordar o impacto económico dos pagamentos em atraso, com particular incidência nos quatro países que mais fustigados foram pela crise – Itália, Espanha, Grécia e Portugal – procurando estabelecer, no mesmo, uma estimativa dos custos financeiros decorrentes desta realidade para as empresas e uma ligação empírica entre o atraso nos pagamentos e a taxa de mortalidade das empresas. Todavia, a análise econométrica que deu origem a este estudo utiliza dados referentes a um conjunto alargado de Estados-membros, o que permite que os resultados sejam extensíveis aos demais países da União Europeia.

Estado é (quase) sempre o pior pagador
A importância dos créditos comerciais, ou seja, daqueles que aceitam o pagamento depois da “oferta” de bens e serviços, aumentou consideravelmente ao longo da crise económica e financeira. E no seguimento da necessidade de se restaurar os balanços das empresas devido a esta mesma crise, o problema nos atrasos dos pagamentos tornou-se muito mais urgente. Na verdade, e de acordo com os dados existentes para Espanha, Itália e Portugal, é notório que os atrasos nos pagamentos entre empresas e entre estas e o Estado agudizaram-se sobremaneira com a denominada Grande Recessão. 

Obviamente que esta realidade afecta de forma mais brutal as pequenas e médias empresas, nomeadamente os seus cash-flows, os seus custos financeiros, em conjunto com a enorme incerteza que nelas gera enquanto credoras. No geral, a proporção de empresas que identifica os atrasos nos pagamentos como uma barreira aumenta em proporção directa com a menor dimensão das mesmas, sendo que 47% das microempresas os interpretam como um enorme problema versus apenas 35% das empresas de grande dimensão.

Estes atrasos dão origem a condições financeiras muito mais restritiva e a um aumento dos custos administrativos e financeiros, na medida em que o financiamento externo pode vir a ser necessário para a gestão do cash-flow. Não é assim de estranhar que estes atrasos possam resultar em insolvências e falências, o que significa que as empresas são obrigadas a deixar o mercado, “morrendo”. Este efeito é mais claro no caso em que é o Estado o grande devedor, sendo o efeito líquido dos pagamentos em atrasos nas transacções B2B, a priori, menos intuitivo na medida em que, apesar de ter um efeito negativo nos credores, no que diz respeito aos devedores, a consequência é inversa. 

O paper em causa aborda assim os custos dos atrasos nos pagamentos tanto nas transacções B2B, como nas G2B, estimando o custo financeiro que o mesmo impõe, em conjunto com o efeito na “morte” das empresas na medida em que as “empurra” para fora do mercado.

Uma das primeiras conclusões do estudo sublinha a heterogeneidade no que respeita ao prazo médio de pagamentos e aos seus atrasos entre os diversos Estados-membros. No que respeita às transacções G2B, Itália, Portugal, Grécia e Espanha são os países que pior performance demonstram em ambos os critérios. As autoridades públicas em países como a Finlândia, a Estónia, a Suécia, a Dinamarca e a Alemanha são, por seu turno, os que se destacam, entre todos os Estados-membros, pela positiva.
Com a Alemanha a servir como referência, o efeito da crise em termos de atrasos nos pagamentos é perfeitamente visível em Espanha, Grécia e Itália e Portugal, com o país da senhora Merkel a demonstrar uma significativa melhoria, no que aos pagamentos do Estado diz respeito, e mesmo ao longo de todo o período de crise. Um outro gráfico que consta do estudo comprova igualmente que, tanto em termos de prazo médio de pagamento, como dos atrasos, entre empresas, Itália, Chipre, Espanha, Portugal e Grécia são os mais “mal-comportados”, sendo que no top dos melhores se encontram a Finlândia, a Roménia, a Alemanha, a Áustria e a Dinamarca. O paper realça, contudo, que apesar de o problema se ter agravado com a crise financeira em alguns dos piores performers, os dois últimos anos demonstraram algumas melhorias. E, em todos os gráficos analisados, o Estado ocupa sempre o lugar de pior pagador quando comparado com as transacções efectuadas entre empresas.

Num mundo ideal, pagar a horas significaria diminuir drasticamente a morte das empresas
Para estimar o efeito dos atrasos nos pagamentos na taxa de mortalidade das empresas, o estudo em causa levou em linha de conta um painel de dados anuais de 17 Estados-membros da UE, cobrindo nove sectores e o período entre 2005 e 2010. E apesar de este paper se concentrar nas reformas realizadas em Itália, Espanha, Grécia e Portugal (depois deste período), a análise econométrica é feita a partir de dados relativos a uma amostra mais ampla dos países da UE, nomeadamente a Áustria, Bélgica, República Checa, Alemanha, Dinamarca, Estónia, Espanha, Finlândia, França, Hungria, Itália, Holanda, Polónia, Portugal, Suécia, Eslováquia e Reino Unido, sendo que as “elasticidades” estimadas se referem, assim, à média dos efeitos sentidos na própria União Europeia.

Os retrocessos são analisados separadamente no que respeita ao impacto na taxa de “saída” das empresas do mercado devido aos atrasos dos pagamentos tanto nas transacções B2G como nas B2B – na medida em que poderia ser argumentado que os atrasos nos pagamentos no sector privado não são independentes dos atrasos nos pagamentos no sector do Estado, “pormenor” que o autor do estudo leva em consideração. Todavia, este facto reforça a ideia que o efeito dos pagamentos com atraso por parte do Estado e relativamente às empresas privadas pode gerar repercussões em outras empresas (sob a forma também de atrasos nos pagamentos no segmento B2B). Existe igualmente uma diferença entre a dimensão das empresas que se envolvem em cada um dos tipos de transacções: por um lado, porque nas transacções entre as autoridades nacionais e as empresas privadas, assiste-se, em regra, a uma sobre-representação das de maior dimensão; por outro, porque as operações entre as empresas privadas têm maior probabilidade de afectar as pequenas e médias empresas e, consequentemente, os negócios que com mais facilidade poderão vir a ser extintos.

Apesar de o autor sublinhar a falta de dados no que respeita à representação das PME nas transacções B2B, entre 2006 e 2008, 66% do valor total dos contratos públicos foram adjudicados a empresas de grande dimensão.

Adicionalmente, o sinal esperado dos efeitos dos atrasos nas empresas não é tão directo como no caso da administração pública devido ao facto de as transacções privadas envolverem dois agentes, um credor e outro devedor. Um sinal positivo seria esperado se, por exemplo, as PME caíssem na categoria dos credores e as grandes empresas agissem como devedoras. Mas a verdade é que a questão do atraso nos pagamentos tende, de longe, a representar uma taxa de turnover muito superior nas PME, sendo que estas são também muito mais vulneráveis a problemas de liquidez devido ao acesso mais dificultado ao crédito que têm. Assim, os resultados sugerem que o atraso nos pagamentos causam, a estas empresas, um fardo financeiro muito mais pesado, o qual pode obrigar, consequentemente, à sua saída do mercado.

No que respeita às transacções B2B, os resultados empíricos demonstram que o atraso é estatisticamente significativo e possui um impacto prejudicial na medida em que aumenta a taxa de saída do mercado: a redução de um ponto no rácio de atraso dos pagamentos reduziria as taxas de mortalidade das empresas em cerca de 2.8 a 3.4 pontos percentuais. Por seu turno, nas transacções G2B, o mesmo efeito estatístico significativo dos atrasos nos pagamentos também se comprova – um ponto de redução no rácio de atraso conduz a um decréscimo nas taxas de saída de cerca de 1.7 a 2 pontos percentuais. Todavia, o efeito é mais reduzido do que nas transacções B2B, o qual poderá dever-se à diferente representação das PME nos dois tipos de transacções.

Em Portugal, mais de nove mil empresas poderiam ser salvas
Para avaliar a relação directa entre os atrasos nos pagamentos e a taxa de mortalidade das empresas nos quatro países em causa, o autor socorreu-se de dois cenários possíveis.

O primeiro olha para os progressos desde 2010, e compara as alterações ocorridas entre este ano e 2013 no rácio de atraso de pagamentos por país. O cenário, simulado para Itália, Espanha e Portugal, mostra que a um dia a menos nos atrasos de pagamentos corresponde uma redução estimada de 0.08 pontos percentuais em termos de mortalidade das empresas (B2B) e de 0.52 pontos percentuais nas transacções G2B.

O segundo cenário, obvia e infelizmente hipotético, prevê o impacto da redução total dos atrasos nos pagamentos – para zero – de acordo com os atrasos médios relativos a 2010 para cada país. No caso específico português, este cenário ideal representaria um decréscimo da taxa de mortalidade das empresas de cerca de 16,78% (B2B) e de 16,27% para as transacções entre o Estado e as empresas privadas. Nos três países especificamente analisados, os ganhos observados seriam substanciais, com especial relevância para o nosso país, o qual é apontado como o território que mais teria a ganhar com este cenário, na medida em que o país apresenta os mais reduzidos termos contratuais comparativamente a Espanha e à Itália.

Como adverte também o estudo, os números apresentados em termos de percentagem parecem pouco significativos. Mas, se olharmos para a magnitude desta redução, em termos de quantidade de empresas que seriam salvas e se as taxas de mortalidade fossem reduzidas em um ponto percentual (nos vários sectores analisados), a Itália acusaria uma redução de mortalidade que se cifraria em 41,415 empresas, ao passo que em Portugal e em Espanha a redução seria de 9,373 e de 31,747 respectivamente.

As conclusões deste estudo estão, assim, em linha, com a lógica económica e sugerem que os atrasos nos pagamentos em termos de transacções comerciais tanto no sector público como nas entidades privadas possuem impactos verdadeiramente prejudiciais no ambiente de negócios, em particular ao exacerbarem o fardo de empresas já financeiramente vulneráveis, o que as pode obrigar a desaparecer do mercado.

Por outro lado, o custo financeiro em termos do PIB imposto pelos atrasos nos pagamentos por parte do Estado é elevado, sendo “liderado”, na União Europeia, por países como a Grécia, Portugal, Itália e Espanha. A notícia menos má é a redução do rácio existente entre os atrasos e os termos contratuais em Portugal, e também na Itália, observados em 2013, o que poderá traduzir-se em menos “extinções” de empresas. A situação não melhorou em Espanha, o que poderá indicar que os efeitos das medidas recentes de combate a estes atrasos não são ainda observáveis em termos de dados.

Nota: De acordo com o autor do estudo, as análises que visam quantificar os custos económicos do problema dos atrasos nos pagamentos são muito limitadas. Todavia, o responsável por este paper, William Connell, analista económico e membro do Directorate-General for Economic and Financial Affairs (ECFIN), utilizou dados contidos num projecto elaborado pelo próprio ECFIN, cujas principais conclusões são apresentadas num outro relatório intitulado “Market Reforms at work in Italy, Spain, Portugal and Greece”, European Economy 5|2014. Caso pretenda fazer uma análise mais aprofundada do estudo aqui resumido, consulte O impacto económico dos pagamentos em atraso.

* Um excelente texto, quanto mais vezes o ler mais aprende!


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