Os novos sonâmbulos
Li há pouco a tradução portuguesa (infelizmente tardia,
apressada e com revisão muito descuidada) de Os Sonâmbulos, do
historiador australiano Christopher Clark, talvez a obra mais completa e
esclarecedora sobre as origens da I Grande Guerra, mas que tem passado
quase despercebida entre nós.
"De Sócrates a Passos, o que vemos é um pequeno exército de sonâmbulos perdidos nos seus enredos fatais"
Clark mostra como os dirigentes europeus de há um século se
deixaram arrastar, sem se darem conta das consequências dos seus actos
irreflectidos e suicidas, para o conflito mais devastador da história
europeia, apenas superado, trinta anos depois, pela II Guerra Mundial
(cujas origens remontam, porém, às tremendas convulsões provocadas pelo
morticínio de 1914-18).
Apesar de algumas aparentes contradições na descrição do enredo dos
acontecimentos que conduziram à catástrofe, a metáfora do sonambulismo
no comportamento dos dirigentes europeus revela-se inteiramente
apropriada: não há um culpado solitário mas uma conjugação de culpas
múltiplas que se encaixam umas nas outras como num puzzle construído por
uma entidade invisível e maléfica.
O livro de Clark tem sido evocado a propósito da recente crise na
Ucrânia e dos riscos de um confronto armado entre a Rússia e o Ocidente.
No entanto, o alcance contemporâneo de Os Sonâmbulos é ainda mais vasto
e assustador quando observamos o mapa dos conflitos internacionais,
nomeadamente desde o 11 de Setembro e os efeitos perversos da
intervenção americana no Iraque, culminando no actual surto do fanatismo
islâmico que ninguém foi capaz de prever - e prevenir.
Mas o estado de sonambulismo descrito por Clark em relação a 1914 não
se reduz hoje à esfera dos comportamentos que proporcionam
subrepticiamente - e irresistivelmente - o desencadear das guerras.
Veja-se, por exemplo, o que vem acontecendo na União Europeia ou até, a
uma escala bem mais modesta mas não menos reveladora, em Portugal. Não
estaremos perante outras formas de sonambulismo - embora pacífico,
digamos - que conduzem a situações críticas de ruptura financeira,
económica e social?
Foi isso, aliás, que esteve também na raiz do grande terramoto
financeiro de 2008, com a falência seminal do Lehman Brothers,
propagando-se um pouco por todo o mundo até atingir o seu epicentro na
Europa. Enfrentamos agora uma aguda crise de crescimento e deflação
prolongada para a qual não se vislumbra ainda uma saída, apesar dos
alertas (e remédios) lançados por Mario Draghi, presidente do BCE, ou
alguns dirigentes do FMI (organismo que é, de resto, um caso agudo de
sonambulismo e esquizofrenia, com as suas recomendações de sinal
contrário sobre a austeridade e o crescimento).
Será compatível o combate à recessão e à deflação com o dogma
integrista dos 3% do défice do PIB que penaliza especialmente os países
mais afectados pela austeridade e pelo agravamento imparável da dívida
externa, como acontece com Portugal? Haverá sonâmbulo mais consumado do
que o alemão Schäuble, ministro das Finanças de um país cujo
fundamentalismo doutrinário não o impediu de ser já atingido pelo
agudizar da crise europeia?
Ao justificar a meta do défice de 2,7% do PIB no Orçamento do
Estado de 2015, em vez dos 2,5% combinados com a troika, Passos Coelho
manifestou-se contra o “fanatismo orçamental” de Bruxelas - que
insiste, além disso, numa dose renovada de austeridade. Eis uma
interessante reconversão pré-eleitoral de duas décimas por parte de quem
não só parecera acomodar-se a esse fanatismo como se propusera ir ainda
para além da troika.
O sonambulismo tornou-se uma espécie de estado vegetativo dos dois
parceiros da coligação, constrangidos a manter a sobretaxa do IRS e
condicionando a sua descida em 2016 a um aumento mágico da receita
fiscal. Um expediente eleitoralista pouco convincente - e muito
questionável no plano fiscal e constitucional - mas que mostra o
colete-de-forças em que se debate o Governo depois de ter exercitado até
ao limite a postura de 'bom aluno' europeu.
Mais ou menos convictos (o PSD) ou relutantes (o CDS, grande
derrotado na baixa dos impostos), os aliados da maioria perseguiram o
objectivo impossível do programa da troika - ou só possível aos olhos
dos sonâmbulos de Lisboa e Bruxelas. Agora, nem os 4% do défice de 2014
estão seguros. Os nossos vigilantes europeus já prevêem a hipótese
sombria de 7,5% por causa do buraco do BES.
Por causa do BES - e não só - caiu entretanto a mítica PT,
arrastando o quase eterno sobrevivente Granadeiro e o genial Bava.
Aliás, desde Sócrates a Passos, passando pelo dono-disto-tudo Ricardo
Salgado, entre o despesismo iluminado e a austeridade redentora, entre
capitães da banca e da indústria ou sargentos políticos, o que vemos é
um pequeno exército de sonâmbulos perdidos nos seus enredos fatais.
IN "SOL"
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