As pérolas e o fio
As palavras e os conceitos esvaziam-se rapidamente quando destituídos
do sentido contextual que os relaciona e lhes confere substância e
prestam-se a mistificações fáceis quando utilizados de modo avulso.
Philip Schlesinger é um
académico que tem analisado o modo como a palavra criatividade se impôs
no universo político. Na implementação de políticas públicas, na procura
de soluções para um mundo competitivo, em todas as esferas de acção, a
palavra surge como a chave do sucesso, o elemento que pode fazer a
diferença, o atributo que representa a vantagem inegável.
Substituiu
outros predicados, como o da organização, o da planificação, o da
eficácia e, maravilha das maravilhas, está ao alcance de qualquer um… Na
Universidade de Glasgow, aquele investigador liderou um estudo de
rastreio semântico dos textos políticos, procurando subtilezas de
linguagem e evidências da grosseria com que se abusa dos conceitos, em
particular desse de criatividade. A importância de estudos como este
reside em demonstrar como se transforma um discurso em credo e como se
passa, levianamente, do discurso político à doutrina. (A ironia com que a
palavra também é utilizada revela a que ponto ela se banalizou,
surgindo a pretexto da fragilidade, da incoerência, da incompetência ou
dos sinais de desagregação de um qualquer projeto).
Aparentemente,
a fortuna do termo criatividade estaria relacionada com a falência de
uma série de hierarquias e de binómios, outrora estruturantes do
pensamento crítico e agora fora de prazo. Entre essas hierarquias
contar-se-iam: a da alta e baixa cultura (em tradução literal), a da
cultura erudita e popular, a das artes maiores e menores, a da cultura
séria versus entretenimento, a do espectador versus consumidor, a da cultura de exceção versus publicidade.
Processos de reificação dos fenómenos culturais e artísticos, lógicas
de massificação, estratégias de mercantilização teriam gerado consenso e
levado ao abate sistemático de cada uma das polaridades mencionadas.
Nas escolas de arte, onde o termo artista ou criador foi já, em grande
parte, substituído pelo termo criativo, que se pretenderia mais acertado
num contexto secularizado, democrático e inclusivo, ter-se-ia feito a
travessia das belas-artes às artes plásticas, das artes visuais às media arts e às artes criativas (precisamente o nome da escola de Philip Schlesinger em Glasgow).
O
certo é que as hierarquias persistem quando atribuímos a qualidade de
criativo a certos espaços e atividades e relegamos para o mundo dos não
criativos outros espaços e atividades. Era a esta repartição que eu
queria chegar. Porque ela me remeteu para as justas referências do
vereador da Cultura da Câmara Municipal do Porto à existência e à
suficiência de equipamentos culturais na cidade, faltando apenas o nexo
de uma programação integrada. Mais do que bairros ou quarteirões,
equipamentos e casas, salas e galerias, precisam-se roteiros, percursos,
trilhos, lógicas articuladas de programação que promovam a circulação, o
conhecimento da vizinhança, a solidariedade institucional, as
afinidades e as complementaridades.
A cultura é este nexo e
talvez por isso esta câmara não tenha recusado um pelouro para esta
palavra, um pelouro para a celebrar, incentivar e gerir, ao contrário do
executivo anterior que a votara ao esquecimento e a rasurara, em favor
de uma designação oca e de má memória.
Há uma frase que recusa o
uso inconsistente das palavras (e das ações) e que gosto de ter à mão. É
uma frase extraída de uma carta escrita por Gustave Flaubert a Louise
Colet, em 1852. Inseguro do valor de uma obra que a destinatária da
carta classificara como pérolas, Flaubert respondeu-lhe do seguinte
modo: "Não são as pérolas que fazem o colar, é o fio." Na cidade as
pérolas já existem, falta o fio.
Directora da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, no Porto.
IN "PÚBLICO"
09/01/14
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