Estado de direito,
apesar de tudo
1.
Nunca um Governo teve tantos diplomas relevantes para a sua governação
chumbados. É difícil perceber qual a verdadeira razão que leva o Governo
a insistir em desrespeitar a Constituição que jurou respeitar. O mais
provável é ser uma combinação de negligência, vontade de afrontar o
texto constitucional, desprezo pelo órgão fiscalizador e desconhecimento
do papel da lei fundamental numa democracia.
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Quem
não se lembra do primeiro-ministro a afirmar que a Constituição nunca
tinha dado emprego a alguém ou do vice-primeiro-ministro afirmar que ela
não nos tinha livrado de duas bancarrotas ? Ou quando estes dois
senhores consentiram e apoiaram ataques a um órgão de soberania por
instituições estrangeiras ? Não se pode esperar de gente que tem este
tipo de afirmações e esta conduta qualquer respeito pela Lei
fundamental. Os sucessivos chumbos só surpreenderão, de facto, os muito
distraídos.
2. Apesar de todos os juízes do Tribunal
Constitucional terem julgado a lei da convergência das pensões
desconforme com a Constituição por violação do princípio da confiança,
mesmo assim voltou a ouvir-se a ladainha do costume: é preciso mudar a
Constituição. Ouvi, até, respeitáveis directores de órgãos de
comunicação social, como o da revista Exame e da direcção do Expresso,
João Vieira Pereira, a afirmar que o texto constitucional impedia o
corte da despesa e que o texto constitucional devia ter mecanismos de
emergência para situações como as que vivemos. Quanto a cortes na
despesa, poupo ao estimado leitor a leitura da lista dos já realizados,
em salários e prestações sociais, que o Tribunal não reprovou. Mas o que
gera perplexidade é perceber que há pessoas - respeitadoras e amantes
da democracia, com certeza - que pensam que um dos princípios que está
na base do Estado de direito, o da confiança, que exige uma
previsibilidade mínima na relação do Estado com os cidadãos, possa estar
sujeito a uma qualquer emergência económica. Não há uma única
Constituição duma democracia liberal que consinta na suspensão do
princípio da igualdade, confiança ou proporcionalidade em função dum
problema económico. Ou seja, que consinta a suspensão do Estado de
direito.
Eu sei que já cansa repetir, mas, pelos vistos, há quem
não tenha ouvido ou não queira ouvir: não têm sido normas
constitucionais promovidas pelo ambiente revolucionário (que aliás há
muito foram retiradas da Constituição nas suas várias revisões), nem
delírios esquerdistas, que têm suportado as deliberações do TC, são
princípios comuns a todas as democracias e Estados de direito.
3.
Há três semanas, escrevi neste espaço que estava convencido de que o
Presidente da República iria suscitar a fiscalização preventiva da
constitucionalidade do Orçamento para 2014. Foram demasiados chumbos
anteriores e há demasiados indícios de que este também tenha
inconstitucionalidades em normas fundamentais para a sua coerência. Como
Cavaco Silva escreveu no pedido de fiscalização do diploma sobre a
convergência das pensões, é muito provável que também no documento com a
proposta orçamental exista "conduta furtiva" do legislador, "legislação
sacrificial" e o Estado esteja a deixar de desenvolver "comportamentos
capazes de gerar nos privados expectativas da sua continuidade". Em
muitos aspectos, esta argumentação do Presidente podia ser usada para um
pedido de fiscalização do Orçamento.
Hoje, penso que ainda há
mais razões para que Cavaco Silva o faça. Para o Presidente a
estabilidade é um bem em si próprio. Não há valor que mais respeite.
Ora, se já havia um clima de fortes dúvidas sobre a não
inconstitucionalidade do Orçamento, mais ficou reforçado com a última
deliberação dos juízes do Palácio Ratton. Está instalada a dúvida. Vamos
- nós, os mercados e os nossos credores - viver sem saber se lá para
Março ou Abril o edifício orçamental vai ruir ou não. Serão decisões dos
cidadãos e empresas adiadas, os mercados em suspenso. Mais, tudo o que
for negociado para o plano cautelar (que evidentemente existirá) pode
ter de ser mudado.
O Presidente não consentirá que vivamos num ambiente de tanta instabilidade durante tanto tempo.
4.
Para não variar, a reacção dos responsáveis políticos dos partidos do
Governo conteve o habitual: "Respeitaremos integralmente as deliberações
do Tribunal Constitucional." Mas não há ninguém que chame à atenção
para tão descabelada declaração? É para nos informar que estiveram a
pensar e que afinal decidiram não fazer um golpe de Estado? Convinha
pensar só um bocadinho antes de falar.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
22/12/13
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