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Advogado
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
23/09/18
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Le pénis
Não gosto de fascistas e tenho pouco a dizer sobre pilas, mas abomino
qualquer forma de censura de uns ou de outras. Proibir a vista dos
pénis de Mapplethorpe é tão condenável como proibir a vinda de Le Pen à
Web Summit. A minha geração não viveu qualquer censura, nem a de direita
nem a que se lhe seguiu de esquerda. Fomos apenas confrontados com
alguns relâmpagos de censura, mais caricatos do que reais, a última ceia
do Herman, o Evangelho de Saramago. E as discussões mais recentes - o
cancelamento de uma conferência de Jaime Nogueira Pinto na Nova, a
conferência com negacionista das alterações climáticas na Universidade
do Porto - demonstram o óbvio: por um lado, o ato de proibir o debate
seja de quem for é a negação da liberdade sem mas ou ses, mas também a
demonstração de que não há entre nós um instinto coletivo de defesa da
liberdade de expressão independentemente de concordarmos com o seu
conteúdo, e de este ser mais ou menos extremo.
Mas não é também a
liberdade destas entidades, na sua maioria privadas, fazerem o que
quiserem, mostrarem e não mostrarem o que querem? O que é condenável é o
recuo perante a crítica, perante o medo - o sinal pior de todos.
Serralves pode organizar mostras de anjinhos em vez de pilinhas, mas
escolhendo estas coloca-se num espaço de limitação de liberdade cujo
recuo ou acomodação por pudor, ou crítica, não pode deixar de ser
debatido como afronta dessa mesma liberdade. Deixo a nota que o que se
passou em Serralves parece ser menos do que parecia, e que é comum as
fotos terem alguma seleção e avisos, como veio explicar o presidente da
Fundação Mapplethorpe que considerou precipitada a demissão do diretor
João Ribas (homónimo do falecido vocalista dos... Censurados).
Censurar diviniza. Holland Cotter, crítico de arte do The New York Times, escreveu há uns anos que a campanha judicial e mediática contra a exposição retrospetiva The Perfect Moment, de Mapplethorpe, em 1989, três meses depois de ter morrido com sida marcou o início da sua canonização.
No domingo fui ver o filme Easy Rider (de
Dennis Hopper, 1969) ao CCB, levei a minha filha mais velha. No filme,
os dois amigos vendem e consomem muita droga, há algum sexo e toda a
narrativa é subversiva. É adequado para uma adolescente de 16 anos
acabados de fazer? Estes exercícios de liberdade são pretextos para
enquadrar o valor profundo, único em todos os sentidos, da necessidade
de critério perante a escolha, perante as opções, a antecipação das
consequências, mas também, que é a parte maior da liberdade, o confronto
com o desconhecimento das consequências, nunca a ausência de
consequências. Porque tudo tem consequências. E uma das lições, uma das
ideias, é precisamente a da responsabilidade perante os nossos próprios
atos quando estes nos retiram a liberdade (desde logo a bebida ou outras
formas de intoxicação, mas também as relações de codependência, o
carneirismo, a manada). As coisas geralmente não são más em si, são más
quando fazemos o que não queremos, ou não queremos os efeitos do que
fazemos. E depois há a liberdade dos outros, a fronteira vermelha de
todos os nossos atos. Muitos dos atropelos da liberdade passam por não
escutarmos o que o outro quer ou não quer, se os nossos instintos, com a
sua força própria, estão do outro lado a ser acolhidos em liberdade.
Neste
momento, dois sistemas de justiça andam a ser confrontados com isto
mesmo, como querem ser vistos, que mensagem querem dar, a propósito de
homens que passam por cima da liberdade da outra, que não controlam os
seus mapplethorpes, sobre a igualdade e desigualdade dos géneros. Quando
tinha 17 anos um jovem alcoolizado forçou uma rapariga de 15 em cima de
uma cama e tentou ter sexo com ela. Passados 36 anos esse episódio,
relatado pela vítima, pode custar a Brett Kavanaugh a nomeação para o
Supreme Court. A verdade nunca se saberá, de um lado um testemunho
convincente, do outro a ausência de testemunhas e até agora o carácter
singular da acusação, e no meio destes dois lados 36 longos anos. Poderá
alguém de quem se suspeita ter feito isto ser juiz de um tribunal
superior? Um barman e um segurança abusam sexualmente (cópula) de uma
rapariga alcoolizada e inconsciente na casa de banho de uma discoteca,
confessam, há vídeos. Em conversas intercetadas dizem "ela estava toda
fodida" "toda desmaiada no quarto de banho". Um tribunal considera os
factos provados mas suspende a pena (como teria sido sem confissão ou
vídeos?). O tribunal superior considera, numa sentença coassinada pelo
presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Manuel Soares,
que a pena se deve manter suspensa. Perante o escândalo público, o
sindicato reage a coice, dizendo que tem toda a razão, e que os juízes
não andam a reboque "das associações militantes das causas" (sic), e que ao criticar-se o acórdão aumenta o sofrimento da vítima. Tanta coisa que falhou.
A
educação para liberdade interior, e para o respeito dessa no outro, é o
maior desafio a cada um de nós. E não é óbvio onde está esse critério:
uns encontram-na em sistemas ideológicos políticos, outros numa forte
ética dentro de si próprios, outros fora ou na conjugação de tudo isto.
No meu caso, alimento-o na arte e na cultura, na criação subversiva, na
liberdade extrema dos outros, mesmo, ou sobretudo, quando choca, ou
impressiona. Mas foi quando me converti ao catolicismo que encontrei o
critério e a medida da mais absoluta liberdade interior, porque baseada
numa regra de amor. Para muitos, sei, é contraditório, ver na religião a
porta da liberdade. Talvez esteja eu a ver mal, talvez não estejam eles
a olhar para a mesma religião que eu, ou não estejam a ser livres no
seu olhar - nunca saberemos, se eles tiverem razão; saberemos um dia, se
eu tiver razão.
No Easy Rider há uma busca de liberdade
interminável, na estrada, nas drogas, na comuna hippie, através do
dinheiro. Mas é numa das primeiras cenas, em que param num rancho de uma
família numerosa, cristã, para arranjar um pneu, em que o rancheiro
lhes oferece uma refeição, carregado de crianças, com uma mulher de
outra etnia (nativa?), que Wyatt (Peter Fonda) é confrontado com uma
forma de liberdade que identifica mas não esperava. Diz ao dono do
rancho: "Não são todos os homens que conseguem viver da terra. Fazer as
suas coisas, ao seu ritmo. Deves estar orgulhoso." Quando Wyatt e Billy
são mortos no final, não é pelas drogas na comuna hippie nem pela família que leva a sua vida no rancho a procriar e a trabalhar. É por um bando de rednecks,
radicais intolerantes, que julgam viver uma verdade absoluta que não
suspeitam que lhes foi imposta, pessoas que nunca se questionaram sobre a
sua liberdade.
Advogado
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
23/09/18
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