Narcos 2018
– Se eu tivesse marijuana no tupperware deixavam-me ir? – Claro. Estamos inclusivamente a estudar
uma proposta de legalização. Isto dos croquetes é que é muito nocivo
Foi um dos casos mais graves da minha carreira e afectou a nossa
unidade para sempre. Estávamos em Janeiro de 2018, escassos dias após a
publicação em Diário da República do despacho nº 11391/2017, que
limitava a venda de produtos prejudiciais à saúde em bares e cafetarias
de instituições do Ministério da Saúde. Salgados, pastelaria,
charcutaria e refrigerantes tinham sido banidos desses espaços, para
estimular hábitos de alimentação saudáveis. Eu, Javier Peña, e o meu
colega Steve Murphy, fomos enviados pela DEA americana para ajudar
Portugal na luta contra os fritos e as gorduras saturadas. A nossa
primeira missão, que seria também a última, foi vigiar a cantina do
Hospital de Santa Maria. À primeira vista, estava tudo bem: a cantina
vendia apenas frutas, legumes e vários produtos desenxabidos. Mas os
frequentadores do hospital pareciam manter uma certa felicidade bastante
suspeita, e o Ministério mandou investigar. No princípio, não demos por
ele. João Diogo Dias vinha visitar uma tia, operada a uma hérnia. De
repente, na ala em que a tia estava internada, os outros doentes
começaram a ficar mais alegres. Riam alto, conversavam, não tinham
qualquer intenção de impingir uns aos outros receitas de batidos verdes.
Era óbvio que não estavam a seguir uma alimentação saudável. O Murphy
ofereceu-se para se infiltrar à paisana e descobriu tudo. Dias depois,
João Dias estava sentado à minha frente na sala de interrogatórios,
depois de ter sido apanhado na posse de um tupperware com 10 croquetes,
cinco rissóis e três empadas.
– Sr. Dias – disse eu –, sabe qual é a pena para quem trafica salgadinhos?
João Dias não respondeu.
– Isto mata, sr. Dias. Os seus são especialmente perigosos, porque são caseiros.
– Não é tráfico, eu trouxe-os para a minha tia. Os outros doentes pediram-me e eu ofereci.
–
Sabemos como isto funciona, sr. Dias. Os primeiros são oferecidos, até
os clientes ficarem agarrados ao rissol. O meu colega, que se infiltrou à
paisana, e a quem ofereceu dois croquetes, está neste momento a fazer
análises. O colesterol dele subiu dois pontos. Dois pontos, sr. Dias. E
está perdido. Não creio que possa voltar a trabalhar. Quando o levaram
para a clínica, gritava “Deixem-me só provar as chamuças!”, e também
“Aquilo deve ir bem é com uma imperial fresquinha!” Ele nem sequer é
português, sr. Dias.
– Eu só queria animar a minha tia. Ela gosta de croquetes.
– O problema é que isto não é um produto inofensivo que possa ser usado para fins médicos, como a marijuana.
– Se eu tivesse marijuana no tupperware deixavam-me ir?
–
Claro. Estamos inclusivamente a estudar uma proposta de legalização.
Isto dos croquetes é que é muito nocivo. Mas nós não estamos
interessados em si, sr. Dias. Sabemos que é apenas o correio. Se nos
disser quem produz estes croquetes, não o acusaremos. O nosso
laboratório diz que os seus croquetes são dos mais puros que eles já
viram: carne a sério, refogado puxadinho, pedaços de chouriço. Quem os
fez sabia o que estava a fazer.
– Mas desde quando é que os croquetes são proibidos?
– Desde Dezembro. Tem de estar mais atento aos despachos do Ministério da Saúde. Vamos, sr. Dias. Só precisamos de um nome.
Fez-se um silêncio. Finalmente, o homem quebrou:
– Clotilde Dias.
– Quem é?
– A minha avozinha.
– Devíamos ter adivinhado. São sempre elas. Essa geração está perdida.
IN "VISÃO"
11/01/18
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