O pudim
A imagem que define o que vivemos não vem da política nem da
História mas sim da culinária: nós somos um pudim. Pouco consistente mas
um pudim em que as diversas fatias se amparam umas às outras
Devia escrever sobre a vitória de Rui Rio não era? Pois devia mas
acontece que preciso que passe tempo para conseguir ver com nitidez na
plataforma deslizante constituída pela presente situação política.
A
imagem que melhor define o que vivemos não vem da política nem da
História mas sim da culinária: nós somos um pudim. Pouco consistente mas
um pudim em que as diversas fatias se amparam umas às outras na
expectativa do momento em que caia a primeira: o PS desliza para a
esquerda podendo ou não absorver o BE; o CDS que não pode governar
sozinho não sabe se pender para uma coligação com o PS ou com o PSD; o
BE tremelica avaliando as vantagens de tornar-se na ala esquerda do PS
ou pelo contrário radicalizar à esquerda enquanto os seus comissários
entretanto colocados no aparelho de Estado se encarregarão de infernizar
a vida aos próximos governos de que o BE não fizer parte e por fim o
PSD que não se sabe se é desta que deslaça.
Assim, à excepção do
PCP que está a tratar de se blindar enquanto grupo de oligarcas que
mantém a sua influência através de uma milícia sindical, todos estão à
espera que o outro se mova, sabendo cada um que PS e PSD não podem
continuar a ser o que são. O PSD tem de decidir se quer ser alternativa
de governo ou auxiliar de governação do PS. Já o PS, para lá da questão
de fundo – ser um partido democrático ou um instrumento de poder que
serve abulicamente o caudilho do momento –, tem à sua espera o encontro
com o momento em que o dinheiro dos contribuintes e do BCE, que ao
contrário da voracidade do BE e do PCP não é infinito, deixará de ser
suficiente para pagar a tença ou melhor dizendo o pizzo à
extrema esquerda. Em cima disto, qual molho envolvente, está o
presidente da República mais atrabiliariamente táctico da democracia.
Em
resumo, Marcelo Rebelo de Sousa, Rui Rio e António Costa estão à espera
de acertar com a sua hora Macron. Esse momento em que um homem pode
cavalgar a onda de um regime que se procura regenerar. Sabem que esse
homem virá provavelmente de dentro do regime e acreditam ser eles neste
momento os melhores posicionados para o conseguir. Não ignoram também
que há um quarto nome nesta espera: Passos Coelho. Mas outros nomes
podem surgir porque não é em vão que um país transforma a Procuradoria
Geral da República na sua derradeira e única fronteira. Quando a PGR se
tornou na última instância é porque todos os outros filtros falharam. E
os protagonistas sabem-no. Para Marcelo o “tema não existe”. Para
António Costa, Rui Rio e Catarina Martins é um “nãoassunto”. Ou seja, a
substituição de Joana Marques Vidal é o Assunto. Com maiúscula.
Como
sempre acontece em Portugal quando algo é grave, oficialmente não só
não existe como aludir-lhe torna-se pecado. Foi assim com os retornados,
que oficialmente não existiram durante meses. Foi assim com a dívida,
que só lembrava aos derrotistas. É assim com a sustentabilidade da
Segurança Social, de que não se deve falar porque se põe em causa a
confiança no sistema. Até foi assim com a explicação para a morte de Sá
Carneiro. O regime defende-se tenazmente em Portugal ao conseguir não só
que os problemas não se discutam mas sobretudo ao transformar nuns
corpos estranhos quando não nuns inapresentáveis aqueles que denunciam
os problemas.
Entretanto o pudim vai deslaçando. As fatias amparam-se mas uma delas vai desfazer-se antes das outras.
PS. Há
sinais de degradação do sistema que conseguem ir rompendo a cortina de
silêncio imposta pelas corporações beneficiadas com o actual arranjo
governativo, corporações essa que cada vez mais dividem os portugueses
entre os seus e os outros. Neste momento temos medicamentos que estão
vedados a doentes seguidos no privado. Note-se que o problema não é não
serem menos comparticipados para quem e seguido no privado: é serem
vedados, pois uma portaria do Ministério da Saúde impõe que os
medicamentos para a doença de Chron sejam prescritos “apenas por médicos especialistas em gastroenterologia dos estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde (SNS)”.
Poupança de recursos? Certamente que aqueles que usam este argumento
nunca se confrontaram com o argumento ouvido nas farmácias hospitalares
“vai levar na mesma o medicamento apesar de ter lá em casa porque caso
contrário para o ano dão-nos menos”. Não é uma questão de poupar
recursos mas sim de atacar a liberdade de escolha.
IN "OBERVADOR"
14/01/18
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