Toca a vender a alma ao diabo
Sem querer desmerecer a primazia do conselho de Ferreira Leite, repito com ela: Dr. Rio, venda mesmo a alma ao diabo, que nesse comércio espiritual é de aproveitar o momento em que a cotação vai alta. É a lei do mercado, percebe?
A recomendação é de Ferreira Leite para o presidente-eleito Rui Rio e
já deu que falar: desunhe-se, se preciso for venda a alma ao diabo para
correr com a esquerda do estribo do gabinete do Dr. Costa, se não mesmo
da sua mesa, sabe-se lá onde essa gente se instalou. A bem dizer, Rio
já tinha dito isso, sem ter que invocar o inconveniente diabo, que tem
entre os laranjas a má fama de nunca chegar a horas. A tomar por certo o
que correu o risco de anunciar durante a sua campanha, o objetivo de
Rio é mesmo esse. Perdendo dentro de dois anos, vai já adiantando que a
moral e os bons costumes recomendam que dê uma mão ao estouvado do Dr.
Costa para o aliviar das más influências.
Imagino os sorrisos de auto-condescendência no Bloco e no PCP. Afinal
de contas, se o intuito da direita ao renovar-se é condensar a sua
política no objectivo estratégico de se aliar ao PS no temor de que,
preso a acordos com a esquerda, aquele partido amanse os seus
compromissos europeus e outros avulsos, a começar pelo patronato que ama
as leis laborais troikistas e pelos interesses que estremecem quando se
fazem contas às rendas, então as esquerdas não poderiam exibir melhor
certificado de competência e vitória. Nunca a esquerda foi tão
evidentemente definida como o eixo da política pela direita. É aliás
cândido que Rio tenha feito dessa subserviência ao PS um mote de
campanha, e é não menos arrebatador que os incentivos que recebe, já de
vitória no bolso, lhe peçam que não saia dessa sua linha de rumo.
Claro
que para o PSD isso é suicidário. Votem-em-mim-para-eu-apoiar-o-PS é
uma frivolidade, para os eleitores mais crédulos mais vale então votar
no PS. Isso já se verificou em minúscula escala na última eleição,
noutro quadrante, e não deixa de ser curioso que o PSD, à direita,
acredite que se reforça com uma política que anuncia o seu próprio
fracasso como alternativa. Mas é assim mesmo e a realidade impõe-se
contra os cálculos: para a direita económica, o único desígnio presente é
dar a maioria absoluta ao PS, sozinho ou em bloco central, na esperança
de o trazer ao redil da saudosa tradição liberal, os mercados a tomarem
conta da segurança social e da saúde, já para não esquecer os
transportes de Lisboa e Porto que estavam prometidos a quem de direito. O
conforto de alma, o fim de sobressaltos e da incerteza sobre a relação
de forças, que os ministros são tão volúveis, tudo advoga esse bloco
central, para uma direita que prefere perder por cem a perder por mil.
Acresce que esta linha diabista tem muitos entusiastas. Para a
esquerda, é o cenário de sonho: a haver incerteza sobre se o PS se alia a
Rio, nem é preciso fazer campanha sobre a necessidade de uma posição
forte para que Portugal não retorne à pasmaceira da austeridade. Para o
PS também não é mau, os que acham que o bloco central é uma segunda pele
ficam aliviados e os que acham que o PSD deve ser reduzido a uma
periferia política ficam animados. Para o CDS, interessante, fica com
algum espaço, mesmo se a catadura de Rio lhe pode ganhar alguma “classe
média”.
Fica um problema, que não é de somenos. Tal estratégia tem
um preço de regime. O bloco central é uma coisa nos anos oitenta,
saídos da revolução e com aflições constitucionais, e outra nos tempos
de crise dos partidos quarentões. Assim, o único bloco central que os
poderes económicos pretendem é mesmo a maioria absoluta do PS para que o
tempo volte para trás. Tanto pior para as direitas.
Por isso, sem
querer desmerecer a primazia do conselho de Ferreira Leite, repito com
ela: Dr. Rio, venda mesmo a alma ao diabo, que nesse comércio espiritual
é de aproveitar o momento em que a cotação vai alta. É a lei do
mercado, percebe?
IN "PÚBLICO"
17/01/18
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