Kamikaze
Depois de o Salvador ter ganho, e de ter ganho com aquela canção da Luísa, quem vencer a próxima edição é kamikaze. Ficará sempre aquém da expectativa e abaixo da fasquia, a não ser que vença a Eurovisão pela segunda vez consecutiva
Lembra-se onde estava quando o homem
chegou à lua? E no 25 de Abril? Para a minha geração estas perguntas
não se aplicam, mas se perguntarmos onde é que o jovem trintão estava no
11 de Setembro, com certeza que haverá respostas prontas e detalhadas.
Ora para gerações mais frescas, e para fazer uma pergunta mais inclusiva
e abrangente do ponto de vista geracional, fará sentido perguntar: onde
é que estava quando Portugal ganhou o Euro? E eu, que estava num
restaurante de beira de estrada algures perto de Ourique, saberei
descrever, mesa por mesa, quem partilhava do mesmo ecrã no momento épico
em que a traça pousou no nariz de um Cristiano Ronaldo em lágrimas, ou
no espasmo de justiça poética que estourou com o golo de Éder, depois de
tantos e tão longos minutos de sofrimento coletivo.
Isto
para dizer, que há momentos que se comungam na memória coletiva ao
ponto de definir gerações inteiras, povos inteiros, tempos históricos.
Outro desses e muito recente seria bem identificado com a pergunta: onde
estava quando Salvador Sobral ganhou a Eurovisão? E eu, que estava a
comer pizza com as mãos, entre caixotes do IKEA numa casa recém alugada,
saberia dizer com prontidão com que amigos formei a torcida de sofá, e a
que amigos emigrados ligámos a implorar votos naquele momento de
necessidade. Ganhámos! E ganhámos com aquela canção! O meu coração
festivaleiro (de quem nasceu nos anos 80) já não batia assim desde o
“peguei trinquei e meti-te na cesta”! E depois de décadas de baldes de
água fria a ouvir “Portugal one point”, finalmente tinha chegado a nossa
vez!
Não foi por nada
disto que aceitei o convite para fazer uma canção para o próximo
Festival. E nem vale a pena passar a explicar porque disse que sim. O
que é certo é que me comprometi e agora é preciso honrar esse
compromisso, com todo o empenho e as muitas dúvidas que isso implica.
Que tipo de música hei de fazer? Que músicos convidar? Qual seria o tema
da letra? Falo de nós? Mas o que raio é exactamente isso do “nós”? Onde
é que se traça a mediatriz entre a minha música e o Festival da Canção?
O que é uma “canção” e que arrepios deve conter?
A
única certeza é que não serei eu a cantar, porque afinal eu não canto,
falo rápido. Convidei outra voz, porque afinal era a única que queria
que fosse. E depois fui encontrando as respostas em falta. Convidei os
meus músicos para me ajudarem com a composição, porque afinal são os que
me acompanham sempre e porque não agora? (Escolha acertada). Decidi
escrever sobre as palavras, porque afinal é o que mais gosto na vida em
geral e nisto de ser português em particular. E escrevi. Inspirei-me em
algumas frases de algumas crónicas que partilhei aqui e estou feliz com o
resultado.
Sei que é
feio estar a falar sobre uma canção que só poderão ouvir em Fevereiro,
mas além de ser isto que me tem ocupado ultimamente, estive a ver os
documentários que a RTP fez sobre a grande vitória do Salvador e
apercebi-me de duas coisas...
Depois
da grande e arriscada manobra de renovação do Festival da Canção feita
(e muito bem) pela RTP, passou algum do estigma que lhe estava
impregnado, o público cresceu e passou a ser mais “fácil” (ou menos
arriscado) dizer que sim. Os músicos, letristas e compositores, que
fazem a sua carreira na vida real e não na TV, muitas vezes nos
circuitos mais alternativos, tiveram a oportunidade e a vontade de fazer
parte, porque afinal o Festival renovou-se e voltou a ser feito de boa
música. Mas, depois do Salvador ter ganho, e de ter ganho com aquela
canção da Luísa, quem vencer a próxima edição é kamikaze.
Ficará sempre aquém da expectativa e abaixo da fasquia, a não ser que
vença a Eurovisão pela segunda vez consecutiva. E isso, bora combinar,
até com Jorge Palma, Paulo Flores, Tito Paris e uma incrível lista de
outros bons compositores, é muito pouco provável.
IN "VISÃO"
11/01/18
.
Sem comentários:
Enviar um comentário