J. Jesus, a reinar.
Disciplina, impunidade e
responsabilidade social
Arsène Wenger não gosta particularmente de José Mourinho. José Mourinho
não gosta particularmente de árbitros. Uns e outros não gostam assim
tanto da imprensa, e dos media em geral, particularmente quando os
resultados dos jogos não são bons e, em especial, quando os resultados
dos jogos, não sendo bons, se vão repetindo jogo após jogo, ou quando os
erros de arbitragem complicam a vida dos clubes e, em particular, dos
próprios árbitros.
Antes do jogo a favor da UNICEF, organizado
por David Beckham algumas semanas antes do Natal e onde participaram
antigos jogadores (Paul Scholes, Beckham, entre outros, ou jovens
jogadores, Brooklyn, o filho de Beckham, jogador do Fulham) Alex
Ferguson, entrevistado antes do jogo, parodiando Mourinho respondia, por
duas vezes, e rindo, no comments (sem comentários). Uma semanas antes, Mourinho havia repetido I have nothing to say
(não tenho nada a dizer), visivelmente irritado, quando o repórter
educadamente lhe perguntava, uma vez mais, as causas e as consequências
dos problemas óbvios vividos na equipa. Mesmo antes do Natal, de olhar
fixo, a forma seca de van Gaal se livrar do repórter, que insistia na
sua saída do Manchester United diante dos maus resultados registados,
foi mandar o repórter ir comer as mints pies (pequenas empadas
doces), típicas do Natal, e deixá-los trabalhar pois nada do que corria
nas manchetes dos jornais, nos media, correspondia àquilo que, de facto,
se passava. Na verdade, van Gaal estava furioso, à maneira holandesa.
Impressionante, o auto-controlo.
Em Inglaterra, à saída de um
jogo, quando Mourinho dirigiu palavras menos elegantes e menos serenas
aos árbitros ingleses, a multa aplicada equivalia ao valor de um bom
apartamento. Em Portugal, por razões inexplicáveis, existe um código de
ética, publicado pela Associação Nacional de Treinadores de Futebol, que
não tem grande importância e umas multas, menos do que simbólicas, do
Regulamento de Disciplina da Liga Portuguesa de Futebol Profissional
(Nuno Sousa, O Público, 8 de Janeiro de 2016) não fazem qualquer
diferença. É legítimo perguntar: para que serve um código de ética que
não funciona? É que a ética está em cada um de nós e, desde cedo, em
todas as circunstâncias da vida, e se o código existe sob a forma
escrita, editada por um dos órgãos mais importantes do grupo
profissional dos treinadores de futebol, é para vincar a sua existência,
isto é, a sua eficácia corrente, prática, um conjunto de normas que
regula a vida em comum. Vamos a ver se me faço entender. Não é porque
existe um código de ética que a ética existe. O contrário é que vale – o
código de ética existe porque existe uma ética na vida, exercida desde o
interior de cada um de nós, que entende expressar uma conduta num
código que é conhecido e compreendido por todos.
Por outro lado,
para que existe um regulamento se esse regulamento não funciona como
todos os regulamentos deveriam funcionar? Um regulamento não é um
apêndice, não é um artifício, não é uma listagem de condutas que devem
ser observadas. É algo que ao indicar, com toda a clareza, as regras de
conduta que são reconhecidas por todos os responsáveis de uma
determinada área, neste caso da Liga Portuguesa de Futebol Profissional,
e aceites por todos como as maneiras de agir que são adoptadas e
respeitadas, sanciona com toda a severidade os desvios registados. Não é
o caso. Para além dos valores ridículos impostos, sem qualquer
graduação consoante a categoria dos clubes em que dirigentes e
treinadores, ou outros, intervêm, nada acontece a não ser a total
impunidade. A quem serve esta situação? Certamente que não serve o
desporto. Obviamente, não serve o público, não serve o país. Para além
do mais, é penoso verificar que, também no desporto, a impunidade grassa
e a justiça é só para ser aplicada sobre os outros. Em Inglaterra, a
justiça dentro e fora do desporto é exemplar e rápida na sua aplicação.
Nas últimas semanas, em Portugal, assistiu-se a desafios, de J. Jesus
contra Lopetegui, de J. Jesus contra Rui Vitória, do tipo dos pugilistas
americanos antes de entrarem no ringue de boxe, o que se passa? No pasa nada! Não deixa de ser estranho.
Não
se trata de teoria e muito menos de moralismos. Trata-se da vida comum,
em que uns e outros têm responsabilidades, em que há normas e regras e
devem ser controladas todas as circunstâncias que podem degenerar, muito
facilmente, em confrontos incontroláveis de todos contra todos. Em
situações que não se conformam com o respeito devido ao público, à
sociedade e ao desporto, a perda de contratos de publicidade é uma das
consequências imediatas. Será que nos contratos relativos aos direitos
de transmissão dos jogos existem cláusulas relativas a consequências
perante actos desrespeitosos perpetrados por qualquer profissional
ligado ao desporto? É aí que entra também a responsabilidade das
empresas que encontram no campo dos desportos e, em particular, do
futebol, um vasto domínio de enriquecimento mas pouco contribuem para a
dignificação do espectáculo e, ainda menos, para o nível elevado da
conduta da vida pública. O desporto é um meio para que tal seja
favorecido, não o contrário. Não deixa de se ganhar dinheiro por isso,
pelo contrário – uma vez que participam na qualidade edificante, elevada
e exemplar do desporto. Quando afirmamos que o desporto é a sociedade e
que todos – dentro do desporto, a todos os níveis, à volta do desporto e
fora do desporto – são responsáveis por uma conduta exemplar, isso
significa que essa conduta é socialmente consciente. Não ignora que
participa e tem repercussões em todos aqueles que, de uma forma ou de
outra, estão ligados ao fenómeno social que é o desporto. Garantem-me,
por aí, que é isso que vende. Que o Big Brother é que interessa. Pode
ser.
A disciplina é dura para os jogadores. No centro do
confronto jogado, diante dos ímpetos mais viris de derrota do
adversário, os jogadores, em geral, submetem-se. Sabem que, no mercado
de jogadores, jogar bem, dominar a técnica, a tática e a estratégia, não
basta. É preciso ser disciplinado, trabalhador, persistente,
concentrado, motivado, generoso, observador das regras dentro e fora do
campo, que é preciso agradar ao treinador antes de agradar ao público.
Para os jogadores, tudo é claro. Quanto a treinadores e a dirigentes
parece que as fronteiras entre as boas práticas se esbatem tanto que se
invade o domínio do vale tudo. Esse campo, não é o campo do desporto que
proporciona actos extraordinários, acções que surpreendem tanto quanto
revelam que tudo pode ser de outra maneira.
Vejamos. Tanto o
treinador, como o dirigente a todos os níveis, representa a autoridade,
distingue-se pelo rigor e a seriedade, a maturidade, suscita a
confiança. Que ter autoridade não é ser autoritário. Só é autoritário
quem não tem autoridade. A seriedade e o rigor, bem como a maturidade,
manifestam-se em todos os momentos através do respeito pelo trabalho e
por aqueles com quem se trabalha e para quem se trabalha. Treinadores e
dirigentes têm de ser formadores de gente capaz para o desporto e, nessa
actividade, para a sociedade entendida como o conjunto das relações que
se estabelecem entre uns e outros, entre todos nós. Tem de ser um
educador de homens e de mulheres, tem de representar um mentor, um
modelo a seguir que inspira a superar os limites a que se está
condicionado. Com Alex Ferguson, não havia dúvidas. Ficou registada a
reacção perante os excessos publicitários de David Beckham e a falta de
concentração no trabalho duro, o seu trabalho. Com Bobby Robson, o
acompanhamento de Paul Gascoigne mais do que o de um treinador era a de
um verdadeiro pai, vigilante, atento, paciente, até ao fim da vida. Que,
no entanto, diante das qualidades e carácter desse jogador, admitiu ter
aprendido com ele. Outros, entre os velhos, não abandonam, como Bobby
Charlton, personificação dos valores do MU e que assiste, atento e
impassível, a todos os jogos do Manchester United, com a sua mulher ao
lado, apesar da idade, apesar do frio, apesar dos maus resultados. É uma
presença, representa um modelo de dedicação ao clube inglês, à
comunidade. André insiste comigo que a comparação não pode ser
estabelecida com a sociedade inglesa, o futebol inglês, o desporto
inglês, mas, antes, com a Turquia, a Grécia, o Irão!
Convém, no
entanto, não esquecer, que o desporto moderno começa em Inglaterra, que é
daí que é difundido para todo o mundo, um sinal de civilização, de
desenvolvimento. Um avanço, tal como era entendido, que arrasta consigo a
transformação das sociedades onde era integrado e onde integrava outras
maneiras de fazer, outras formas de pensar e de projectar o mundo, de
organizar o tempo e de planear o espaço. Há algum país que não tenha
esta ou qualquer outra forma, mais ou menos ocidentalizada, de desporto?
Uma vez que todo este movimento ocorre antes do aparecimento da
televisão, a globalização do fenómeno foi defendida e propagandeada
segundo interesses e valores caros à sociedade. Por isso as regras, por
isso os grupos, os clubes, as associações, locais, regionais, nacionais,
internacionais, mundiais! A preocupação de educar acompanha todo o
desenvolvimento do desporto moderno. Ganham-se milhões, em Inglaterra,
com a indústria da educação, da cultura, da produção de todo o tipo de
indústrias, a vários níveis – e naturalmente, com o desporto. Não se
permitiria que fosse de outro modo, ou não teria sido possível ter
chegado ao estado a que chegou hoje se assim não tivesse sido. Quer
queiramos ou não, é a referência inicial, referência esta que luta,
conscientemente, por ser mantida como tal. Considere-se, nessa
perspectiva, a organização dos Jogos Olímpicos de 2012, e a exigência
colocada para que não houvessem falhas, em particular entre atletas
britânicos, nas questões mais controversas e sensíveis como, por
exemplo, o doping.
Quando, em Inglaterra, nos fins do século
XIX, a aristocracia britânica, através dos seus jovens adultos do sexo
masculino, impõe não só as regras que vigoram nos jogos em si, mas
apressa-se a integrar normas e regras de conduta nos jogos, nos clubes,
nas associações e nas federações de todos os desportos (os quais
dirige), no sentido de marcar bem a diferença entre o jogo e a batalha
campal. No essencial, essa pequena diferença – que mudaria tudo -
assentava na maneira de se conduzir no jogo, no campo, em especial, e
fora do campo, que passou a designar-se fair-play. Algo
extremamente britânico que vigora no mundo anglo-saxónico, em geral, e
que se expande pelo desporto a todo o mundo. Superior, inteligente,
qualidade e refinamento indispensável a quem comanda gente, afirma dessa
forma clara que manners make the man, as maneiras fazem o homem,
falam por si e são indispensáveis na vida e no desporto, em particular.
Ali, a justiça (o futebol e o desporto) funciona, sem exibicionismos,
com a eficiência e, tanto quanto possível, a discrição britânicas - numa
terra em que a comunicação social é feroz e, além do mais, extremamente
bem preparada e responsável. E a vaidade é vista como uma forma de
provincianismo.
Os professores sabem que só aprende quem quer.
Não falta quem queira aprender entre nós, nas nossas universidades e nas
universidades britânicas, em particular. Nós fazemos a nossa parte:
estudamos, observamos, transmitimos o conhecimento, investigamos,
acompanhamos os terrenos de jogo, os confrontos e as práticas, estamos
presentes e abertos ao aprender, ensinamos, avaliamos. Ao mesmo tempo,
convidamos uns e outros, atletas, jogadores, treinadores, dirigentes,
médicos, fisioterapeutas, empresários, políticos, os diferentes media,
para transmitirem as suas experiências, os seus saberes consolidados nos
diferentes campos e níveis dos desportos. A universidade faz parte de
uma extensa rede de profissionais empenhados em melhorar e valorizar o
desporto, os seus agentes, a sociedade através do desporto, a vida em
geral, a vida saudável e a vida social através do desporto. Constatamos o
seguinte: enquanto a formação e os métodos de treino se multiplicam e
apuram, a medicina do desporto aprofunda os seus recursos (de prevenção e
de recuperação dos jogadores e das diferentes lesões) e multiplica as
áreas que a apoiam, a tecnologia da mais avançada invade cada segmento
da actividade, no entanto, as atitudes, inclinações para agir de uma
determinada forma, e de pendentes do factor humano e social, em grande
parte, as atitudes refreiam a mudança e a transformação mais profunda,
contaminam e insistem em formas de comportamento anacrónicas que estão
longe de contribuir para a valorização do desporto, de todos nós. Na
estrutura social onde o desporto representa um modo de vida, esse é o
factor que – uma vez alterado – permitirá a transformação decisiva de
tudo. Não há desculpa.
Professora Agregada da Universidade de Lisboa, Faculdade de Motricidade Humana
IN "A BOLA"
20/01/16
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