06/05/2023

EDUARDO BARROSO

 .




Respeitar os doentes,
sempre

Primeiro, não fazer mal..."

(Atribuído a Hipócrates, 460 aC.)

Num interessante livro, que na tradução portuguesa, tem o título Não faças mal, Henry Marsh, um grande neurocirurgião inglês, faz uma reflexão sobre os erros, a culpa e o lado humano da medicina. Talvez demasiado auto-crítico, e até demasiado pessimista, começando logo com uma citação de René Leriche, retirada da obra La philosophie de la chirurgie de 1951 que passo a transcrever: "Todos os cirurgiões trazem dentro de si um pequeno cemitério aonde vão rezar, de tempos a tempos -- um local de amargura e remorsos, onde têm de encontrar uma explicação para as suas falhas". Percebo no entanto a razão que o levou a escrever este magnifico livro, que Ian McEwan, grande escritor britânico, classificou de assombroso e o The Independent "uma visão fascinante sobre o que é desempenhar o papel de Deus". Para alguém como ele, que sabe melhor do que ninguém que salvou, ou melhorou milhares de vidas, fazer uma reflexão onde se concentra sobretudo sobre aquelas em que não o conseguiu fazer, corresponde a uma necessidade imperiosa de ajustar contas com a vida. De ficar bem com a sua consciência. Como eu o percebo. Eu faço parte daqueles cirurgiões que trago dentro de mim um pequeno cemitério, onde vou rezar de tempos a tempos, e tento encontrar uma explicação para as minhas falhas. Nem sempre um efeito adverso que na sua forma mais grave pode resultar na morte de um doente, resulta de erros ou falhas, mas não deixam de ser um local de amargura e remorsos, como diz René Leriche.

A primeira preocupação de qualquer médico é não fazer mal, o que para os cirurgiões tem um significado ainda maior. Nós, cirurgiões, que para podermos ser úteis e eficazes, temos sempre de começar por agredir. E a pior coisa que podemos fazer é agredir sabendo que não havia indicação para o fazer, operar sabendo que não havia indicação, ou pior ainda, sabendo, ou tendo dúvidas, que não tínhamos competência para o fazer. Destas duas horríveis situações, que revelam um total desrespeito pelos doentes, tenho a consciência completamente tranquila. Posso ter-me enganado com uma indicação que pensava correta mas que acabou por não se confirmar, mas NUNCA operei ou propus operar nenhum doente, em que soubesse à partida não haver indicação. E sempre fui muito crítico em relação às minhas competências específicas, NUNCA me propus fazer uma operação onde sequer suspeitasse não ser competente. Quando fiz a minha primeira transplantação hepática na vida, estava completamente convencido que me tinha preparado intensamente para isso, mas não deixou de ser um enorme risco para o doente.

Mesmo estando preparado para fazer determinadas intervenções, mesmo tendo corrido tudo bem e não se ter cometido qualquer erro, as complicações acontecem, e os doentes sofrem e podem até morrer. E é difícil viver com isso, a vida profissional de Henry Marsh é a prova disso.

Por isso sou um defensor acérrimo dos Centros de Referência, onde podemos à partida, tentar garantir as melhores condições para podermos vencer certas batalhas, certas doenças muito graves. Com isso garantimos sempre sucessos? Garantimos não haver nunca complicações? Impossível, garantimos apenas total respeito pelos nossos doentes, e isso, acreditem meus caros leitores, faz-nos poder adormecer com a consciência tranquila, às vezes, no meu caso, com a ajuda de um comprimido e com as lágrimas nos olhos.

Sei que tive falhas, estive longe de ser infalível, encontrei eu sempre uma explicação para as minhas falhas? Vou seguir o exemplo de Henry Marsh, talvez em Outubro possa contar-vos, com total transparência, um trajecto de vida enquanto médico cirurgião. Não vou ser masoquista, reportar apenas eventuais falhas ou inêxitos, e esconder-vos as coisas boas, felizmente em muito maior número, mas espero que desse trajecto ressalte sempre, mas sempre, o enorme respeito, a enorme consideração que tive pelos meus doentes.

* Médico cirurgião

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS" - 06/05/23.

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