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IN "EXPRESSO"
05/08/20
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Eliminar a violência
contra crianças até 2030
Quantos Países da União Europeia vão cumprir o objetivo? Nenhum!
Cinco
anos depois da adoção da Agenda 2030 pelos 193 Países da ONU, nenhum
dos 27 países da União Europeia (UE) está no bom caminho para alcançar,
até 2030, o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 16.2 “acabar
com o abuso, exploração, tráfico e todas as formas de violência e
tortura contra crianças”.
A
Agenda 2030 ao introduzir um objetivo específico que apela à eliminação
de todas as formas de violência sobre as crianças fez um avanço
histórico. Pretendia-se criar uma dinâmica única para um movimento à
escala mundial para que os países colocassem termo a este fenómeno.
Segundo
a edição de 2019 do "Relatório de acompanhamento do Eurostat sobre os
progressos para alcançar os ODS no contexto da UE", a avaliação do ODS
16.2 não pode ser medida por falta de dados existentes na UE nos últimos
cinco anos. Não foram aplicadas as metas e indicadores propostos para
este ODS no espaço europeu.
À
escala global, a situação também não é animadora. O que foi feito até
agora não é suficiente e, por isso, é necessário aumentar o nível de
ambição, apelando a um maior esforço e compromisso dos países. Para
isso, foram adotadas 100 ações de aceleração dos ODS e uma declaração
política na qual se apela a 10 anos de compromisso e entrega totais, uma
Década inteira de Ação 2020-2030.
Recordo
que a UE se comprometeu a implementar os 17 ODS, tanto nas suas
políticas internas como externas, incluindo o ODS 16.2. relativo à
violência sobre as crianças. É disso que dão conta as conclusões do
Conselho dos Ministros da Justiça, de 8 outubro 2019, ao referir o
“empenhamento da UE e dos seus Estados-membros em alcançar o objetivo de
erradicar a exploração sexual de crianças tal como estabelecido na
Agenda 2030”.
Os
dados do primeiro relatório global conjunto de várias Agências das
Nações Unidas, como a OMS e UNICEF sobre a prevenção da violência contra
crianças, divulgado em junho deste ano, com uma abrangência de 155
países referem que metade das crianças do mundo, entre os 2 e 17 anos,
sofre todos os anos violência física, sexual ou psicológica.
Quase
três quartos das crianças entre os 2 e os 4 anos (300 milhões) são
regularmente sujeitas a castigos físicos ou violência psicológica às
mãos dos seus pais ou cuidadores e um quarto das crianças com menos de 5
anos vive com uma mãe sujeita a violência doméstica. No que toca à
violência sexual, estima-se que em todo o mundo, 120 milhões de meninas
com menos de 20 anos já sofreram um qualquer contacto sexual forçado. Na
escola, um terço dos alunos entre os 11 e os 15 anos afirma ter sofrido
uma forma de ‘bullying’.
O
relatório também refere que embora 88% dos países analisados tenham
leis para proteger as crianças, em mais de metade (47%) estão
praticamente só no papel, faltando dinheiro ou estruturas para as fazer
aplicar. Ainda refere que 80% dos países dispõe de planos e políticas
nacionais para prevenir a violência sobre crianças, mas só um quinto tem
financiamento para as implementar ou metas tangíveis: “a falta de
fundos e de capacidade profissional são provavelmente os fatores que
contribuem para a aplicação lenta” desses programas, consideram as
agências das Nações Unidas.
Estes
dados não refletem ainda o aumento de número de casos em resultado da
pandemia da COVID-19. Não há memória de termos tido uma situação de
crise semelhante, mas temos dados suficientes que nos levam a concluir
que os fatores relacionados com o confinamento, isolamento social, o
aumento dos níveis de stress financeiro e diminuição das respostas
sociais estão diretamente relacionadas com o aumento de situações de
abuso físico, psicológico e sexual das crianças em casa, principalmente
aquelas que já vivem em famílias violentas ou disfuncionais. Também o
encerramento das escolas que afetou 1,5 bilhão de crianças em todo o
mundo teve como resultado o aumento do uso de plataformas on-line por
crianças e adolescentes. A internet abriu muitas oportunidades para o
ensino, entretenimento e comunicação, entre outros, mas permitiu um
aumento de exposição ao cyberbullying e comportamento de risco online.
Aliás,
é desta triste realidade que a Agência Europeia para a Cooperação
Policial (EUROPOL) dá conta no relatório divulgado a 3 de abril de 2020.
O abuso sexual online de crianças na UE aumentou durante a pandemia da
COVID-19. Entre 17 e 24 de março foi registado um aumento de 30% em
alguns Estados-membros da EU.
A organização inglesa, Internet Watch Foundation
(IWF), identifica a UE, em 2019, como a região do globo com maior
aumento de predadores sexuais online, em cada 10 endereços de websites
analisados com material de abuso sexual de crianças, 9 são alojados no
espaço europeu (89%), sendo que 71% destes estão localizados na Holanda
devido aos baixos custos de hospedagem, seguido pelos Estados Unidos,
com 9%, que devido à rapidez com que os gigantes da tecnologia como o
Facebook, removem esses conteúdos quando detetados.
Considero
que a abordagem da UE em relação à proteção dos direitos da criança tem
características próprias, diferente de outras Organizações
Internacionais, como Conselho da Europa e as Nações Unidas, assegurando,
por isso, maior efetividade na implementação dos diversos instrumentos,
estratégias e mecanismos europeus existentes de proteção das crianças.
Esta
abordagem levou à adoção, em 2011, da Diretiva (2011/92/UE) relativa à
luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças que contém
disposições que visam fornecer aos Estados-membros normas mínimas para a
aplicação de sanções e medidas para a prevenção dos abusos, combate à
impunidade e à proteção das crianças; e também a adoção da Diretiva
(2011/36/UE) relativa à prevenção e luta contra o tráfico de seres
humanos e à proteção das vítimas, que contém disposições pertinentes
para as necessidades específicas das vítimas infantis. Também nos planos
mais político e estratégico são várias as iniciativas adotadas pela UE,
que não sendo juridicamente vinculativas, são significativas.
Admito que a UE é uma Organização suis generis
por ter ao seu dispor também um conjunto de mecanismos instrumentais -
programas financeiros, critérios de salvaguarda de Direitos Humanos na
pré-adesão de um país, agências europeias, que contribuem decisivamente
para promover melhores níveis de proteção das crianças. A Agências
europeias, como a Unidade Europeia de Cooperação Judiciária (EUROJUST) e
a Agência Europeia para a Cooperação Policial (EUROPOL) contribuem
significativamente para a proteção das crianças, combatendo “as ameaças”
à segurança interna da UE, através da cooperação policial
transfronteiriça e transnacional entre Estados-membros ao identificar e
julgar os crimes internacionais, como o tráfico de crianças, abuso
sexual e cibercrime.
No
entanto, na minha opinião, o progresso alcançado no espaço europeu tem
sido demasiado fragmentado e, por vezes, sem continuidade estratégica.
Quando observamos a situação nacional dos 27 Estados-membros o cenário
não é diferente, vemos que persistem desafios importantes à eficácia dos
sistemas nacionais de proteção da criança que colocam em causa o
desenvolvimento de uma abordagem holística da mesma.
O
pacote de iniciativas anunciado pela Comissão Europeia de reforço da
proteção dos direitos da criança nas políticas da UE é um sinal de
compromisso e pode ser decisivo para o cumprimento do ODS 16.2., caso
haja também compromisso político dos líderes europeus. No entanto, corre
o sério risco de seguir uma abordagem fragmentada como anteriormente,
pela diversidade de áreas que apresenta, tuteladas por 10 dos 27
Comissários europeus, abrangendo, por isso, diversas direções-gerais e
unidades, dificultando o exercício de coordenação transversal e
governação. O mesmo se passa ao nível dos estados-membros naqueles casos
em que estes não dispõem de uma estrutura governamental coordenadora,
como Portugal, onde os direitos da criança estão distribuídos por sete
Ministérios, com abordagens sectoriais específicas no que se refere ao
bem-estar e às políticas de proteção da criança.
Parece
haver uma clara aposta da atual Comissão num forte investimento europeu
no combate ao abuso sexual e exploração sexual de crianças para os
próximos cinco anos, através da maximização dos instrumentos,
estratégias e mecanismos europeus existentes.
Será
dada prioridade a uma melhor aplicação prática da legislação europeia.
Neste âmbito, temos a 1ª Estratégia Europeia sobre os Direitos das
Vítimas (2020-2024), aprovada no passado mês de junho, e que visa
implementar a Directiva (2012/29/UE) que estabelece as normas mínimas em
relação aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da
criminalidade, onde se inclui as crianças vítimas de abuso sexual e
exploração sexual.
Também,
no passado dia 24 de julho, foi lançada a 1ª Estratégia Europeia para
uma luta mais eficaz contra o abuso sexual de crianças e que tem como
objetivo a aplicação da diretiva (2011/93/UE) sobre este tema.
Assistimos a uma aposta numa luta mais eficaz contra o abuso sexual e
exploração sexual de crianças, tanto online como offline,
independentemente do lugar onde se encontra a criança e da sua
nacionalidade, centrando-se na prevenção do abuso, reforço do quadro
normativo e apoio das crianças vítimas de abuso sexual, promovendo a
cooperação europeia e transnacional, assim como a cooperação entre os
fornecedores de serviços e fornecedores de alojamento na internet.
Estas
Estratégias são apenas duas de cinco iniciativas de carácter
estratégico que estão em preparação/negociação nas várias Instituições
Europeias e que têm impacto direito na proteção da criança, em geral, e
no combate à violência sobre as crianças, em específico.
Desde
logo, temos um pacote legislativo sobre os serviços digitais (“Digital
Services Act”) que abrange questões como as regras de segurança das
plataformas digitais, serviços e produtos. Acresce a este, a
implementação das recomendações resultantes da avaliação de dois anos de
funcionamento do Regulamento Geral de Proteção de Dados e a proposta de Regulamento sobre a Privacidade (e.Privacy)
relativa à proteção de dados pessoais nas comunicações eletrónicas,
cuja importância se reflete, tanto num caso como no outro, na
salvaguarda do acesso e conservação dos dados pelas autoridades
competentes de forma assegurar a eficácia da investigação e combate do
crime de abuso sexual de crianças online e offline. Por último, está em
curso, a Estratégia Europeia para os Direitos da Criança 2020/2024
que prevê uma abordagem holística da proteção das crianças na UE,
abrangendo áreas como a participação; a violência e proteção; os
direitos da criança no ambiente digital; bem-estar e inclusão social;
educação; lazer e cultura; justiça amiga das crianças; e mainstreaming e coordenação.
Já
no plano instrumental/operacional são esperadas iniciativas em três
domínios concretos. A começar pela criação de um novo Centro Europeu
para ajudar os Estados-membros a investigar, prevenir e combater os
abusos sexuais de crianças e facilitar a partilha de informação, entre
os Estados-membros. A par deste, será dada prioridade ao reforço da
cooperação entre as autoridades nacionais, os fornecedores de serviços
de acesso à Internet, a EUROPOL e a Interpol, designadamente, através da
criação de mecanismos de intercâmbio de informações cifradas o que
permitirá identificar e bloquear sítios com conteúdos de exploração
sexual de crianças. Também no plano da melhoria da aplicação da
legislação da UE, a Comissão prevê uma maior a ação junto dos
Estados-membros na implementação das Diretivas de 2011 e 2012 nas
legislações nacionais.
Em
relação a este terceiro domínio, constatamos que 23 Estados-membros têm
processos de infração resultante de uma transposição incompleta da
diretiva relativa à luta contra o abuso sexual e exploração sexual de
crianças.
Chegados
aqui, é possível, neste momento, compreender os motivos que levaram a
UE e os seus Estados-membros a assumirem o compromisso, em 2015, com o
ODS 16.2, mas também é possível perceber que não chegarão lá num
horizonte de 2030, caso prossigam com abordagens fragmentadas e
ignorando os instrumentos e recursos significativos de que a UE se foi
dotando neste domínio, ao longo do tempo, sobretudo através do Tratado
de Lisboa e que podem e devem ser agora maximizados.
A
ambição política da Comissão agora demonstrada não pode esbarrar com a
resistência dos Estados-membros de aprofundar uma nova cultura de
cooperação e partilha de responsabilidades e de confiança nesta área da
proteção da criança, em geral, e do combate à violência sobre as
crianças, em específico. Passadas três décadas da adoção da Convenção
sobre os Direitos da Criança, o tempo urge que os líderes europeus tomem
uma ação conjunta arrojada, assumindo a responsabilidade de “não deixar
nenhuma criança para trás”, atribuindo, na minha opinião, um mandato
concreto à Comissão de dar início à elaboração de um Livro Branco sobre a proteção da Criança na UE,
com vista a propor um quadro renovado de cooperação que teria dois
objetivos principais: o reforço da cooperação entre países da UE e uma
melhor integração das políticas de proteção da criança nas políticas
setorais nacionais e europeias.
Que seja Portugal e o primeiro-ministro português a tomar a iniciativa junto dos seus parceiros europeus para que tal aconteça!
* Perita em Direitos Humanos e Direitos da Criança
IN "EXPRESSO"
05/08/20
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