.
* Músico
IN "VISÃO"
08/07/20
.
A Casa da Barragem
Por artes que eu não posso, não devo, não quero, não ouso nem vou compreender, as nossas vidas prosseguem facilitadas sem que sequer tomemos cinco minutos para dar valor a quem tomou a vida toda para as pôr a funcionar
Daqui de onde eu posso apreciar as grandes minudências deste mundo,
as coisas são simples. Do meu ângulo ignorante e ingrato, liga-se
(liga-se? Roda-se, abre-se) a torneira e a água brota cristalina e
morna, e uma pessoa toma um chuveiro. Uma pessoa alivia-se dos
excedentes que o corpo decide excretar, prime aquele botãozinho e dá-se a
magia, a porcaria transita por ali afora por canos até sabe-se lá onde,
rumo ao oblívio derradeiro, uma pessoa pousa a revista na pilha das
revistas que serve de amparo a tarefas dessa natureza, faz o que tem a
fazer e pronto. As coisas ligam-se à parede e acontecem torradas,
música, limpeza a vácuo, CNN em direto da América, cabelos secos. Por
artes que eu não posso, não devo, não quero, não ouso nem vou
compreender, as nossas vidas prosseguem facilitadas sem que sequer
tomemos cinco minutos para dar valor a quem tomou a vida toda para as
pôr a funcionar. Nutro verdadeiro fascínio por quem compreende, por quem
se inclina para estas coisas, por quem tem, por gosto, busca–polos e
ferros de solda em casa, essas coisas cujos nomes nem sei. Os homens da
família da minha mulher são assim. Na família da minha mulher existia,
até há não muito tempo, uma casa numa barragem para os lados de São
Teotónio, Odemira. Entretanto, foi vendida. Uma casa linda, idílica,
junto a um rio maravilhoso, uma casa simples. Uma daquelas casas eco-bio-non-carbon-footprint
em pedra e madeira, onde pousam borboletas e cobras. Daquelas casas
onde os passarinhos cantam e onde a água da torneira sai castanha e é
preciso deixar correr um bocadinho.
Daquelas casas onde, ao lado, existe outra casa, mais
pequena, onde moram alavancas e depósitos manejados por homens, os
homens da família da minha mulher, alavancas que são o coração, o miolo
da engrenagem que faz a casa funcionar. Fui lá uma vez. Instalei meu
ancho e sedentário traseiro numa cama de rede, como um nababo, e
apreciei toda essa telúrica e ecológica simplicidade, sem suspeitar das
alavancas e chaves que o meu cunhado, entretanto, rodava na casa das
máquinas, para que a minha meia de leite vegetal e biológica se me
servisse quente pela manhã, junto a uma torradinha de espelta com pasta
de avelã e xarope de agave. Eu namorava há poucos meses com a minha
mulher e sugeri que seria bom ficarmos lá mais uns dias, só os dois, em
retiro hippie-chic-formentera-green-new-wave-namaste-hashtag-deusnocomando.
Sim senhor, ficaríamos. Os meus cunhados iriam embora no domingo. O meu
cunhado Francisco disse que bom, fiquem mais uns dias, vou só
explicar-vos num instantinho como funcionam as coisas por aqui. Fui
encaminhado para o cadafalso do CPU mecânico de toda aquela engrenagem. A
conversa não se passou exatamente assim, o tempo hiperbolizou-a na
minha mente, mas foi isto que eu ouvi, mais ou menos, enquanto anuía a
tudo com o queixo, de mãos atrás das costas, como capataz de obra
entendido. Para ligar a água quente, estas duas alavancas ao mesmo tempo
até ouvires clank, depois rodas esta chave amarela até o
ponteiro daquela agulheta ali ao fundo chegar aos oito amperes de
voltagem, aos 90 ohms kava, cuidado para não chegar ao vermelho senão a
casa explode, ok, percebi, chave vermelha, cuidado para não chegar ao
amarelo, não, ao contrário, ok, ao contrário, as duas alavancas até
fazer click, não, clank, ok, clank,
entendido, entretanto tens aqui esta marreta para, se aparecer um
javali, lhe acertares no meio dos olhos, acerta com força senão pode ser
perigoso, ok, marreta no meio dos olhos, aqui fica o depósito de água,
este respiro tem de estar sempre entre esta marca e esta, se passar
drenas o tanque com esta pipeta que aqui está, não engulas porque pode
ter estafilococos fecais, esta é a água do esgoto que, entretanto, é
filtrada ali, já te ensino como é que se liga o filtro. Ok, diz-me só
uma coisa, será por causa disso que a água quando se liga sai um bocado
castanha? Depois foi ficar a ver o Range Rover branco do meu cunhado
esvanecer no horizonte.
* Músico
IN "VISÃO"
08/07/20
.
Sem comentários:
Enviar um comentário