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A pobre Igreja Católica
precisa da nossa esmola
Alegando
que por ter igrejas fechadas não tem "receitas" para pagar salário dos
sacerdotes, a Igreja Católica quer ir para lay-off. Não espanta: desde
que a conhecemos que esta alegada benemérita se pendura no erário
público enquanto esconde os proventos. O ponto é: vai o governo nesta
vergonha?
O Tribunal de Contas de Espanha debruçou-se, pela primeira vez, sobre
as contas da Igreja Católica espanhola. Fê-lo com base no financiamento
efetuado pelo Estado à instituição por via da possibilidade de
consignação de 0,7% do IRS devido por cada contribuinte, que anda numa
média de 250 milhões anuais, e em relação a 2017.
Uma das primeiras conclusões do relatório preliminar, divulgado em fevereiro na imprensa,
é de que a Igreja Católica é pouco transparente na justificação do
destino que dá a esse dinheiro - e "os sucessivos governos da democracia
não se preocuparam em exigir que acabe com essa opacidade". Outra é de
que a Igreja Católica apresentou naquele ano um superavit - ou seja, um lucro - de 15,9 milhões de euros.
Esse superavit
foi usado pela Conferência Episcopal Espanhola para financiar uma
sociedade comercial, a cadeia Trece (o canal de TV católico), e para
criar um fundo de reserva. Os juízes lembram, porém, que o compromisso
acordado com o Estado espanhol em 1979, na Concordata, é de que este
"cooperará com a Igreja Católica na prossecução do seu adequado sustento
económico". Os magistrados consideram que sobrar dinheiro à instituição
pode constituir uma violação do acordo.
Acresce, dizem, que a Concordata não especifica quais as necessidades
da Igreja Católica para cujo adequado sustento deve contribuir o
Estado, e que "seria conveniente concretizar a natureza desses gastos",
até porque o relatório anual entregue pelos bispos não permite
descortiná-la. Aliás, nem sequer tem contas certas: no de 2017, entregue
em setembro de 2019, falta justificar 300 mil euros do valor recebido
via consignação. Ainda assim, frisam os magistrados, a Igreja Católica
dá as contas como "definitivas sem que se explique a origem e a razão da
desconformidade", usando termos vagos como "envio para as dioceses para
seu sustento" ou "atividades pastorais nacionais". Atividades nas
quais, segundo o diário El País,
a Igreja Católica incluía até há poucos anos o financiamento do
referido canal de TV católico. Em 2013, por exemplo, 80% do valor
dedicado às "atividades pastorais" - seis milhões de euros, o mesmo que
entregou à Cáritas nesse ano - foram para financiar o canal.
Tudo
isto é, para qualquer português minimamente informado, caso para ficar
de queixo caído. Não pelas revelações - temos o caso da Cáritas, com milhões no banco enquanto se queixava de falta de dinheiro para ajudar os pobres em plena crise da troika, e de misericórdias investigadas por pagamentos "debaixo da mesa" de milhares de euros para aceitar idosos em lares e "sacos azuis"
assumidos como forma de esconder a riqueza do Estado e poder continuar a
pedir-lhe dinheiro - mas pelo extraordinário que é um Tribunal de
Contas analisar contas da Igreja Católica. O simples facto de haver
contas apresentadas é um maravilhamento: ao contrário do que se
passa em Espanha desde 1980, a Igreja Católica portuguesa não está
obrigada a qualquer relatório de contas. Se o Tribunal de Contas
espanhol se queixa de opacidade, que dirão os portugueses?
Poder-se-á
alegar que a Igreja Católica portuguesa como tal (há inúmeras
organizações católicas que o fazem) não aderiu à possibilidade de
consignação do IRS, que em Portugal é de 0,5%. Podendo escolher entre a
consignação e a devolução do IVA, preferiu esta última (confiará pouco
nos seus fiéis?). Mas num caso ou noutro trata-se de uma benesse
estatal, ou seja, um subsídio direto efetuado com o dinheiro de todos os
contribuintes (mesmo a consignação, sendo dinheiro devido ao Estado
pelo contribuinte, é de todos e não do indivíduo considerado), o que
deveria pressupor apresentação de contas.
De resto, a soma de subsídios estatais de que a Igreja Católica
beneficia é algo que nunca foi contabilizado. Gozando, para a
generalidade do seu património imobiliário, de isenção de IMI, ninguém
parece saber a quanto isso corresponde em termos de impostos não
cobrados (já pedi essa informação ao Ministério das Finanças e nunca
obtive resposta). Só sabemos que quando em 2016 o fisco quis aplicar a
letra da lei, cobrando IMI aos imóveis da Igreja Católica não afetos ao
culto, os protestos furiosos dos bispos, falando da "forma sôfrega com
que se tenta cobrar impostos por tudo e por nada e em todo o lado",
levaram a melhor, e ficou tudo na mesma.
Sabemos também que os
sacerdotes só começaram a pagar IRS a partir de 2005 - mesmo os que como
professores de Religião e Moral ou capelães nos hospitais e nas Forças
Armadas eram funcionários públicos não pagavam até aí - e que em termos
de Segurança Social tiveram até muito recentemente (2009) um regime
específico, no qual o total da TSU era de apenas 12% (4% para o padre e 8% para a Igreja),
acrescendo a isso que a média de salário declarado andava, em 2008, nos
366 euros, bastante longe do valor efetivamente auferido, cerca de 800.
Uma das justificações de uma taxa tão baixa de TSU e de os sacerdotes
escolherem fazer o cálculo sobre um valor tão baixo era o facto de não
recorrerem a subsídio de desemprego - por não estar em causa alguma vez
um padre ser despedido.
É imperioso recordar tudo isto agora que a Igreja Católica portuguesa anuncia querer recorrer ao instituto do lay-off. Definido no Código do Trabalho e no decreto especial que lhe permite o acesso simplificado em tempo de pandemia, o lay-off
é um instituto de socorro do Estado, por via da Segurança Social, a
empresas em risco que visa salvaguardar postos de trabalho. Tal está
claramente explicitado no decreto-lei 10-G/2020,
de 26 de março, que "estabelece uma medida excecional e temporária de
proteção dos postos de trabalho, no âmbito da pandemia covid-19 (...)
tendo em vista a manutenção dos postos de trabalho e a mitigação de
situações de crise empresarial".
Talvez por falta de
capacidade minha, não vislumbro como é que a Igreja Católica portuguesa,
cujas contas ninguém conhece e que faz parte de um conglomerado
internacional riquíssimo governado pelo Vaticano, para o qual, como é
uso nas multinacionais, remete parte dos seus proventos, pode alegar
risco de falência ou de despedimento de sacerdotes. Não podendo invocar
nenhuma dessas coisas, que legitimidade tem para pedir à Segurança
Social, sem mãos a medir perante a crise que atravessamos, que a ajude?
Mais incrível ainda é conhecer as justificações apresentadas. "A
maior parte das receitas chegam dos peditórios e dos ofertórios que a
igreja faz nos locais de culto. Com as igrejas fechadas temos
dificuldades em fazer face aos vários salários que temos nas nossas
instituições", diz um padre da Diocese do Porto à TSF, enquanto no Correio da Manhã se fazem contas:
"Com a anulação de celebrações, festas e romarias e o fecho de igrejas e
santuários, a quebra de esmolas e oferendas, entre 15 de março e 15 de
maio, deverá ser superior a 55 milhões de euros."
E o melhor, também no Correio da Manhã: "Mais de metade dos
católicos que costumam pagar a côngrua (o valor de um dia de trabalho)
na altura da Páscoa, este ano, devido ao afastamento da vida da Igreja,
acabarão por não o fazer. Só neste particular, o prejuízo será superior a
33 milhões de euros."
Devemos, pois, concluir, pelas informações prestadas, que o
"prejuízo" causado à Igreja Católica advém da falta de esmolas - as
esmolas, ficamos a saber, que considera "receitas". E que numa situação
de crise, ao invés de se disponibilizar para servir, recorrendo às suas
reservas, Igreja Católica procura servir-se.
Nada de
surpreendente, dir-se-á. Não é de facto. A única coisa que importa mesmo
é saber se o governo vai ceder, aceitando financiar de mais esta forma
uma organização que se esmera em fugir a todas as contribuições e se
furta a qualquer sindicância, tendo ainda por cima a suprema lata de
querer apresentar-se como a grande provedora dos pobres.
* Jornalista
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
02/05/20
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