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IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
04/01/20
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A política esconde-se
atrás de um incêndio
O que está a acontecer na Austrália parece ter sido encomendado por um
demiurgo estranho que nos quisesse mostrar o que pode passar-se se tudo
se passar como não deve. Como aqueles miúdos das orelhas de burro
colocados ao canto da sala. Como uma pena exemplar dada por um tribunal
para evitar mais crimes. E, neste caso, retorcidamente aplicada. À hora de publicação deste artigo havia uma povoação de mais de quatro mil pessoas encurraladas entre o fogo e o mar. E muitas outras foram obrigadas a sair das suas casas, deixando-as à mais que certa destruição pelo fogo.
O
lugar das vítimas e o desespero para as salvar fará que nestes dias, na
Austrália, se esqueça, e bem, tudo o que levou a esta situação. Um
terço da população australiana está a ser afetada, de uma maneira ou
doutra. E a sua totalidade terá na boca o credo, e no coração o aperto
de quem vê o seu modo de vida ameaçado.
Na verdade aquilo que as chamas e a tragédia estão a esconder primeiro é a política.
A política a sério, que tem efeitos na vida, mesmo quando nem sempre esses efeitos são escrutinados como deviam. Facto:
a Austrália é dos países que mais têm lutado - institucionalmente -
contra as medidas de prevenção às mudanças do clima. O seu governo,
conservador, assobia para o lado e nega que haja qualquer tipo de
problema. Nega até a emergência climática, apoiado por uma imprensa
sensacionalista e, também ela, conservadora - já lá iremos.
"Desde
1996 que todos os sucessivos governos conservadores australianos lutam,
com sucesso, para subverter os acordos internacionais sobre o clima em
defesa das indústrias fósseis locais. Hoje o país é o maior exportador
mundial de carvão e gás. E recentemente estava na posição 57 de 57
países em ação pelo clima." Tudo isto denunciava o escritor Richard Flanagan num texto no jornal americano The New York Times.
Tudo
isto não fez que a Austrália ardesse, obviamente, mas fez que fizesse
parte de um sistema que propicia as circunstâncias para esses fogos. E
que tem de ser seriamente questionado, abordado, olhado de frente.
O problema é quem questiona. Também aí, a política. É que a própria imprensa tem estado sob forte ataque,
na Austrália. Em outubro do ano passado, cobriram-se de negro as
primeiras páginas dos jornais independentes para protestar contra uma
nova legislação que impedia a denúncia de situações de corrupção e não
dava qualquer proteção aos "denunciantes" permitindo ao Estado fazer
raides em redações e prender jornalistas nessa base (como, de facto,
aconteceu). O governo tem sido apoiado por uma imprensa também
ela conservadora e também ela negacionista climática - 60% do mercado é
dominado pelos títulos news corp de Rupert Murdoch.
Também isto é política, no sentido cívico do termo. Uma imprensa com medo é uma imprensa frágil.
O
contrário do que precisa a luta contra os interesses instalados, os que
vivem da não mudança do estado das coisas - o que, no caso da
Austrália, significa, por exemplo, a indústria do carvão, altamente
poluente.
E, no final da política, a floresta. A floresta
muito semelhante à portuguesa no seu tipo original, muito densa, muito
seca, autêntico barril de pólvora à espera do rastilho do aquecimento
global, dos invernos cheios de chuva e da seca que se lhes segue
normalmente. A floresta desordenada e não tratada. A floresta que torna
os fogos inapagáveis, desde que assumam certa proporção - com fenómenos
próprios dentro do fogo, como o tão famoso downburst. Parece uma história que conhecemos, e que podemos vir a ter de ouvir mais uma vez.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
04/01/20
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