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* Advogado
O Brexit
(ou outra coisa qualquer)
visto de Savile Row
Savile Row é liberdade de comércio, é facilidade de circulação, é generosidade migratória. É a velha Londres na nova Londres, que é o ponto de encontro do mundo.
Savile Row é uma das ruas que elejo na cidade que prefiro a todas as
que conheço (e suspeito que mesmo às que ainda não conheci).
Num
tempo em que a popularidade (e não só) se conquista e cavalga dizendo o
que muitos querem ouvir - o que lamento -, talvez devesse dizer que é
Lisboa. Mas não é, embora lhe seja muito afeiçoado; e também não estou
no campeonato da popularidade. Pois aqui fica a verdade: Londres é,
exceção feita porventura às cidades invisíveis de Calvino, a cidade que
coloco no topo. E nem é a mais bonita, nem a mais isto ou a mais aquilo,
mas, juntando tudo, é a que tem, para mim, um especialíssimo "it".
Como
escreveu João Bénard da Costa sobre Anna Karina ("Anna Karina e o
Carinho Desmedido"), terá havido melhores atrizes, terá havido mulheres
mais belas, mas com aquelas pestanas batejantes e aqueles olhos que nos
lambem, ninguém. E Savile Row também não é das suas ruas mais bonitas,
embora não esteja mal e fique numa zona em que, podendo, eu não me
importaria nada de habitar. E, embora aprecie um bom corte, não é pela
sedução da alta alfaiataria que aí se pratica que a escolho. Gosto dela -
como gosto de outras, por exemplo a pequena James Street - como local
de observação; e, valha a verdade, também gosto porque sim, já que no
gostar (qualquer que seja) há sempre uma boa pitada de inexplicável
(que, aliás, também pode facilmente fenecer com o mesmo mistério com que
nasceu).
Como posto de observação, é do melhor que há.
E, sendo-o, em tempos de Brexit no horizonte é simultaneamente causa de
atormentada perplexidade e de humilde aprendizagem. Percorrendo-a,
olhando para quem circula e entra e sai, perscrutando as casas de
alfaiataria (quer os seus glamorosos andares térreos ou altos, quer as
subcaves e caves onde se corta e cose), e também pensando um pouco,
vemos logo duas ou três coisas que o Brexit parece negar, mas que são o
coração da vida de Savile Row e da alfaiataria que hoje ali se faz pela
mão de poucos caucasianos, que ali é comprada por gente (com cabedais)
de todo o mundo e que dali sai facilmente "urbi et orbi".
Savile
Row é liberdade de comércio, é facilidade de circulação, é generosidade
migratória. É a velha Londres na nova Londres, que é o ponto de
encontro do mundo. E, no entanto, isso é em grande parte, e
simplificando, o que o Brexit parece não pretender. Bem sei que Londres
não é o Reino Unido, e bem sei que eu - como outros que não pensam que o
Brexit seja coisa boa - poderia rapidamente alinhavar meia dúzia de
causas para o que a maioria dos que votaram e votam parece querer (mas
será?), e poderia, do alto de uma confortável e superior sensação de
saber melhor, apontar-lhes equívocos, falsas nostalgias pela "Pax
Britannica", um mítico espírito cavalheiresco cunhado desde a fábula do
Rei Artur, ou superficialidade de pensamento, sobranceria, cinismo,
raiva, medo; e tantas outras coisas. Mas isso não chega, nem creio que
seja o melhor caminho.
Quanto aos que não pensam como nós,
e sobretudo quando os que não pensam como nós elegem ou ganham (nesse
regime que é o pior, à exceção de todos os outros - como disse Churchill
sobre a democracia, o homem que tanto ajudou a ganhar a guerra e que
logo depois foi apeado do poder pelo voto), talvez seja mais avisado não
apaziguar as perplexidades tão rapidamente. Será melhor aprofundar um
pouco mais, escavar, tentarmo-nos colocar no lugar do outro, verificar o
que se calhar não estamos a ver (ou a fazer) bem. Mesmo que seja para
depois de um longo caminho chegarmos à mesma conclusão, é bom que,
quando discordam de nós e/ou quando perdemos, e também quando não gostam
ou deixam de gostar de nós, questionemos: "Que diabo, porque será
realmente, vejamos ponto a ponto?" Essa indagação séria e calma é a
humilde aprendizagem que nos pode ajudar a perceber melhor, e, depois, a
tomar as melhores decisões, sejam elas: continuar a lutar, desistir,
calar, gritar, mudar de ideias ou conduta, ou fugir a sete pés - seja da
minha amada Londres seja de outra coisa qualquer. Mas não sem antes
tentar, e tentar uma e outra vez, compreender.
* Advogado
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
19/12/19
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