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* Historiador.
Sir Elton John e o
problema da mobilidade social
A música é mesmo capaz de vencer todas as barreiras, até as do orgulho e do preconceito.
Que foi alcoólico e viciado em coca são coisas que já sabíamos, e há
muito. Não significa isto que a autobiografia de Elton John não traga
novidades, e grandes, até nesses domínios de trevas. Mas o que mais me
impressionou em Eu, Elton John foi algo que também já se sabia, as origens modestas do músico de génio.
Reginald
Kenneth Dwigth, que mais tarde adoptaria o nome artístico de Elton
Hercules John, nasceu em Londres, em 25 de Março de 1947, mas, como o
próprio afirma, terá sido um "bebé de guerra", concebido muito
provavelmente quando o seu pai estava de licença da RAF, na qual se
alistara em 1942, no auge da Segunda Guerra Mundial. Foi nesse ano,
aliás, que os pais de Reginald se conheceram, ele um rapaz de 17 anos
que tinha labutado em Rickmansworth, num estaleiro naval especializado
na construção de barcos estreitos para os canais, ela uma rapariga de 16
anos, que trabalhava na United Dairies, a entregar leite numa carroça
puxada a cavalo. Como diz Elton John, "o tipo de trabalho que uma mulher
nunca teria, antes da guerra", e basta isso para percebermos o impulso
que o conflito de 1939-45 deu à entrada das mulheres no mercado de
trabalho, de onde nunca mais saíram, graças a Deus.
As
estatísticas oficiais mostram que, no Reino Unido, o número de mulheres a
trabalhar fora de casa passou de cinco milhões em 1939 para 7,25
milhões em 1943. Em Setembro deste ano, encontravam-se no mercado de
trabalho 46% de todas as mulheres de idades compreendidas entre os 14 e
os 59 anos. Os números são ainda mais expressivos para aquelas, como a
mãe de Elton John, que eram solteiras e que tinham entre 18 e 40 anos:
90% dessas mulheres estavam a trabalhar, segundo os dados oficiais que,
note-se, não incluíam as empregadas domésticas, o que levaria
naturalmente a um aumento vertiginoso daquelas percentagens.
O pai de Elton era um trompetista amador que actuava com uma banda no
hotel North Arrow e terá sido aí que conheceu a futura mulher. Muito
provavelmente, estaria de licença da Força Aérea e o namoro foi curto,
pois durante a guerra, com a morte sempre à espreita, todos tinham
pressa em casar-se e em aproveitar a vida ao máximo. O casamento foi
infeliz, as discussões infindáveis, só interrompidas quando o pai tinha
de se ausentar em trabalho, o que acontecia com frequência, com
destacamentos prolongados no estrangeiro, no Iraque ou em Áden. Elton
John, como o próprio confessa, cresceu numa casa de mulheres, a
residência da sua avó materna, no n.º 55 de Pinner Hill Road. Casa
típica dos bairros sociais que floresceram no Reino Unido nas décadas de
1920 e 1930: uma moradia geminada com três quartos, de tijolo vermelho
no rés-do-chão e pintada de branco no andar de cima.
Filho único, com um pai distante e uma mãe com um temperamento terrível,
que lhe dava valentes sovas em público e lhe destruiu a infância, o
jovem Reginald cresceu a idolatrar a avó materna, Ivy, uma mulher que
tivera uma vida agreste: o seu pai abandonara a mãe quando esta
engravidou e ela nasceu numa working house para indigentes.
Ainda assim, Ivy era uma mulher estóica, que o neto recorda como "uma
daquelas incríveis matriarcas da classe trabalhadora: sensata,
trabalhadora, carinhosa, engraçada". Era, além disso, uma cozinheira
maravilhosa, uma jardineira de mão cheia, uma mulher que adorava beber o
seu copo e se deliciava com uma partida de cartas. A casa de Pinner
Hill Road cheirava a assados e a carvão e tinha sempre gente a entrar e a
sair: a tia Win, irmã da mãe de Elton, o tio Reg, os seus primos, o
homem que cobrava a renda, o senhor da lavandaria, o homem que vinha
entregar o carvão.
Em casa, a rádio estava sempre ligada e a música por toda a parte.
Quando não ouviam rádio, os Dwights, a família materna, punham discos a
tocar na radiola - normalmente jazz, mas também música clássica
- e na casa havia um piano, que segundo parece Elton John começara a
tocar muito novo, com apenas três anos. Não demorou muito a que os pais
pusessem o menino-prodígio a tocar em casamentos ou serões de família.
Todas
as sextas-feiras, ao regressar a casa com o dinheiro da féria semanal, a
mãe passava numa loja que vendia discos e comprava um 78 rotações. Um
dia, trouxe um disco de Elvis Presley. Por um acaso do destino, ao
folhear umas revistas no barbeiro, poucos dias antes, Elton dera de
caras com uma fotografia da estrela do rock and roll, e logo
então ficara deslumbrado por aquela figura que lhe parecia vinda de
outra galáxia. Ao escutar a música, teve uma epifania.
Ao contrário do que se poderia supor, Elton John não sofreu de bullying dos
colegas nem era um solitário introvertido, atormentando por dúvidas
quanto à sua orientação sexual. Era, segundo diz, um rapaz equilibrado
que, se não fossem as desavenças conjugais dos pais, teria tido uma
infância normal, provavelmente enfadonha, saudavelmente enfadonha,
típica de uma criança crescida num bairro camarário da grande Londres da
década de 1950: matinés no cinema infantil Embassy, em North Harrow, o
programa The Gown Show na rádio, pão com banha aos jantares de
domingo. À época, Elton ainda não tinha sequer consciência da sua
orientação sexual e a sua vivência desses assuntos era de uma aridez
desconcertante. Conta até que ficava boquiaberto quando alguns colegas
se gabavam de ter apalpado umas moças no escurinho do cinema - pura e
simplesmente, Elton John não sabia o que isso queria dizer.
O
ponto mais saliente da sua primeira adolescência terá sido um passeio
escolar a Annecy, em França, onde ficou fascinado ao olhar para um
Citroën 2CV, diferente de todos os carros que tinha visto até então ("os
assentos pareciam cadeiras de praia"). No mais, coleccionava discos com
a mesma pulsão acumuladora que, mais tarde, já rico e famoso, quase o
levou à falência, e a pequena jorna que recebia por empilhar grades de
cerveja aos sábados de manhã, no armazém da mercearia Victoria Wine, era
imediatamente gasto na porta ao lado, a loja de discos Siever's.
O
pai, severo e austero, levava-o a ver as partidas do Watford, e a
paixão pelo futebol é uma das constantes da sua vida (Elton John, aliás,
chegou à presidência do Watford em 1976, e nele investiu uma fortuna
para conseguir levá-lo, numa ascensão meteórica, da quarta à primeira
divisão do campeonato inglês). Mas, se o pai apreciava que o filho
vibrasse nas bancadas do estádio do Watford, não admitia a mínima
concessão a tudo o que cheirasse a rock and roll, desde a
música que se dançava aos pulos à forma arrojada de estar e trajar. E,
assim, recorda o músico, enquanto alguns colegas de escola davam nas
vistas com sapatos cor-de-rosa pontiagudos com biqueiras longuíssimas,
"eu continuava a vestir-me como uma versão do meu pai em miniatura".
O seu acto mais rebelde consistiu em comprar uns grandes óculos de
massa, que o faziam parecer Buddy Holly, mas que lhe arruinaram a visão e
o obrigaram a ter mesmo de usar óculos para todo o sempre. Talvez esta
frugalidade no trajar, imposta pelo odiado pai, ajude a explicar a
exuberância do seu visual, só ombreada (e, porventura, ultrapassada)
pelo estilo bombástico do inesquecível Liberace.
Os pais
separaram-se ao fim de anos de brigas e discussões, Elton foi viver com a
mãe e o novo marido dela para um apartamento arrendado em Croxley
Street, cheio de humidade e com o papel de parede a descolar. Mais
tarde, mudaram-se para uma casa nova, a poucos quilómetros de distância,
em Northwood Hills. É mais ou menos por essa altura que começou a ir a
concertos e a assumir que o seu futuro seria a música, sem dúvidas nem
hesitações.
A sexualidade, essa, permanecia indefinida, talvez
mesmo ignorada, e, no dia do seu 21.º aniversário, Elton chega a ficar
noivo de uma rapariga, uma loura alta três anos mais velha do que ele,
sem profissão conhecida, mas financeiramente independente. O noivado
durou pouco, e não necessariamente por ele se ter apercebido de que era
homossexual. Mais importante do que isso, por um acaso fortuito - muito
provavelmente, o momento mais decisivo da sua carreira musical e, logo,
de toda a sua vida - lera algumas letras de um poeta desconhecido,
Bernie Taupin, um homem de origens tão ou mais humildes do que as suas,
que vivia em Owmby-by-Spital, um vilarejo do Lincolnshire, e trabalhava
num aviário a transportar galinhas mortas num carrinho de mão.
Elton
e Bernie acabariam por se conhecer e, desde então, nunca mais se
separaram, formando um dos duos mais duradouros e prolíficos da história
do rock and roll (ao contrário do que muitos pensam, os dois
nunca foram amantes, apenas os melhores amigos, e Bernie sempre foi um
heterossexual de várias conquistas femininas, com quatro casamentos e
três divórcios).
O resto da história é conhecido, ou pode ser conhecido em Eu, Elton John,
que nos mostra até que ponto a sua carreira explodiu a partir do
momento em que o produtor Dick James o convenceu, muito a custo, a
iniciar uma digressão de enorme sucesso pela Costa Oeste dos Estados
Unidos. Depois disso, foi sempre a subir, até ao cume do estrelato
máximo e à adaptação de Candle in the Wind tocada na Abadia de Westminster, nas exéquias de Lady Di.
Nas suas memórias, Elton John, como todo o britânico de sucesso,
orgulha-se da sua intimidade com a família real, conta episódios em que
surpreendeu - e irritou - a avó com uma visita inesperada da Rainha-Mãe a
sua casa, fala da noite em que dançou com Isabel II ou dos avanços e
recuos da sua amizade com a princesa Diana e da ligação aos seus filhos.
Mas,
em vários momentos, evoca as suas origens de Pinner Road, orgulha-se de
ser de lá e de isso ainda estar incorporado no mais fundo da sua
personalidade, incluindo nas suas gaffes ou falhas de etiqueta.
O lado mais sombrio de tudo isso, além dos excessos e das adições,
será, provavelmente, o frenesim consumista e os gastos sumptuários,
muitas vezes em objectos de gosto mais do que duvidoso, típico de alguém
cuja formação cultural, como o próprio reconhece, se fez à base dos
livros condensados da Reader"s Digest.
Se a jactância das raízes é muito comum em vários self-made men de
fortuna ou sucesso, e se muita gente, incluindo entre nós, aprecia
cultivar aquilo a que poderíamos chamar o lumpen chic, há outro ponto
que merece destaque, a importância que o desporto ou as artes - ou
certas artes, bem entendido - tiveram para a democratização das nossas
sociedades e para o incremento da mobilidade social.
Em The Son also Rises,
um grande livro de 2014, o economista Gregory Clark mostrou-nos, com
base numa monumental investigação empírica, que em muitas profissões de
muitos países, incluindo a Suécia igualitária e social-democrata, os
apelidos se perpetuam nos lugares cimeiros: na banca e nas empresas, na
advocacia, na medicina. No desporto, não, quase nunca, pois é raro que o
talento em campo ou as aptidões físicas se transmitam de pais para
filhos de uma forma tão directa.
Nas artes e na cultura, há muitos
casos de gerações de pintores, escultores ou actores e também há
domínios mais elitistas e snobes, como a dança clássica, em que a marca
da mobilidade social parece ser menos intensa. Na música dita "ligeira",
porém, essa marca é evidente.
Posso estar enganado, mas, do que me lembre, na esmagadora maioria dos casos as grandes estrelas da pop não
herdaram dos paizinhos o lugar que ocupam, conquistaram-no com um
talento inato, intransmissível, vindos de baixo, de muito baixo, com
enorme esforço e, claro, a sempre necessária pontinha de sorte, como
sucedeu nos momentos-chave do trajecto meteórico de Elton Hercules John,
que por um acaso conheceu outro homem do povo, Bernie Taupin, e que por
outro acaso aceitou o desafio de Dick James para fazer uma tournée retumbante pela Califórnia.
Talvez o facto de o pedigree familiar
ser pouco ou nada relevante em certos meios artísticos, orgulhosamente
"de vanguarda" e mais tolerantes à "diferença", acabe por dar saliência a
outros factores, também pouco ou nada meritocráticos, a começar pela patronnage de semideuses de referência numa dada área (um crítico influente, um pintor famoso, um maestro aclamado).
E
talvez seja por isso que os casos Epstein ou Weinstein sejam,
tristemente, tão frequentes e comuns no mundo da moda e das artes, da
cultura popular em geral e até da academia. Não sei se pode ser
formulada como lei sociológica, mas talvez seja possível dizer-se que é
nos domínios mais abertos à mobilidade social que, à falta de pais e
avós com apelidos sonantes, os padrinhos protectores, e tantas vezes
assediadores, ocupam lugar de (imerecido) destaque.
É possível, não sei. O que sei é que a música pop (ou o futebol ou o boxe, não o hipismo nem a esgrima, obviamente) rompeu e rompe com o establishment e
com hierarquias sedimentadas ao longo de décadas, de séculos, e que até
a rainha de Inglaterra teve de se vergar à popularidade dos The Beatles
ou à exuberância flamejante de Elton John, e tantos outros. Num golpe
de marketing de belo efeito, Diana Spencer, quando morreu, foi
venerada como "princesa do povo", mas antes dela já Isabel II tinha
aberto as portas do Palácio de Buckingham a Paul McCartney e aos seus
comparsas, num sinal maravilhoso de que a música é mesmo capaz de vencer
todas as barreiras, até as do orgulho e do preconceito.
* Historiador.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
14/12/19
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