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IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
14/11/19
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Coitado do
Álvaro de Campos...
Cansa,
tanta hipocrisia debitada sobre o recém-nascido resgatado por um
sem-abrigo. Só muitos dias mais tarde, quando a Embaixada de Cabo Verde
anunciou que iria cuidar da mãe, é que a saúde dela foi notícia.
Não
há como esconjurar a culpa pela indiferença cúmplice que consente
tamanho horror. Nem espanta esta súbita ilustração, real e cruel, do
cenário desolado que Pedro Costa nos convida a contemplar num filme
ainda em exibição nas salas de espetáculos... Será que estavam certas as
conterrâneas de Vitalina Varela que a esperavam no aeroporto para lhe
dizer que não havia aqui lugar para ela?
O que mais nos faltará saber?
Na abertura de um colóquio sobre história
militar, o ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, destacava a
preocupante analogia entre os desafios que ameaçam as democracias do
nosso tempo e a desestruturação social e política que, após a I Guerra
Mundial, levou à ascensão dos fascismos na Europa e implantou em
Portugal a mais duradoura ditadura do século XX. Esse tempo inscreveu a
sua marca nas artes e na literatura. Por exemplo, na poesia de Fernando
Pessoa, o autor da epopeia esotérica, "Mensagem", expoente máximo
daquilo a que chamou "nacionalismo místico". Autor também de "O menino
de sua mãe", o poema mais amargo alguma vez escrito em língua portuguesa
acerca da separação e morte, acerca da guerra, das "malhas que o
império tece".
Álvaro de Campos
(heterónimo de Pessoa), poeta imaginado, cruza-se numa rua da Baixa com
"um vadio e pedinte" por profissão. Então como hoje, o mesmo universo
fragmentado, comunidades onde se romperam elementares laços de
solidariedade, a mesma vulnerabilidade, a mesma inquietação perante
mudanças sociais profundas, um futuro incerto. O individualismo estético
de Álvaro de Campos, embriagado de lucidez, assoma ali com patética
ironia:
"Coitado do Álvaro de Campos!
/ Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações! / Coitado dele,
enfiado na poltrona da sua melancolia! / Coitado dele, que com lágrimas
(autênticas) nos olhos, / Deu hoje, num gesto largo, liberal e
moscovita, / Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele /
Pobre que não era pobre, que tinha olhos tristes por profissão. //
Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa! / Coitado dele
que tem tanta pena de si mesmo! // E, sim, coitado dele!/ Mais coitado
dele que de muitos que são vadios e vadiam, / Que são pedintes e pedem, /
Porque a alma humana é um abismo. // (...) Já disse: sou lúcido. / Nada
de estéticas com coração: sou lúcido./ Merda! Sou lúcido." (Cruzou por
mim, Ficções do Interlúdio)
Deputado e professor de Direito Constitucional
14/11/19
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