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Civilização ocidental:
a descida aos infernos
Não renego a civilização europeia, menos ainda a democracia e a liberdade. Mas está na hora de aceitarmos que daí também nascem supremacistas e racistas, promotores da exploração e da desigualdade.
Desde a
expansão marítima europeia que, invocando a herança da democracia grega e
dos seus princípios, do cristianismo e da sua moral, do iluminismo e da
sua racionalidade, das revoluções americana e francesa e das repúblicas
que originaram, da democracia liberal e da sua promessa de igualdade e
prosperidade, que nos entregamos à prática de pregar, por todo o mundo,
que o melhor será seguir o nosso modelo por forma a partilhar da nossa
prosperidade e da força das nossas instituições.
Até mesmo a
alternativa, o modelo falhado das sociedades de planeamento central,
foram criação de mentes europeias. A queda do Muro veio esclarecer o
modelo vencedor. Proclamou-se a “morte da história”. A democracia
liberal e o seu filho, o capitalismo moderno, tinham ganho a batalha.
Eis-nos agora a braços com as contradições da suposta superioridade da
civilização europeia e dos seus três filhos diletos, Trump, Bolsonaro e
Salvini, todos homens brancos de cultura, língua e história europeias.
Comecemos por Trump.
O
recente massacre de El Paso, uma cidade americana onde 80% dos
residentes são de origem hispânica, deixou 22 mortos. O seu autor, num
manifesto publicado antes do massacre, declarou que o ataque foi “uma
resposta à invasão hispânica do Texas”. Ora Trump, em comícios levados a
cabo no ano passado, tinha declarado “vejam o que se está a passar! É
uma invasão”. E antes, durante a campanha eleitoral, apelidou os
migrantes vindos do sul de “violadores” e chamou aos países africanos
“buracos de merda”. Há apenas duas semanas, convidou quatro
congressistas democratas americanas, de raça não-branca, “a voltarem
para os países de onde vieram, os piores do mundo”.
O que aqui se
lê é simples e chega-nos em primeira derivada: nós, os homens brancos
ocidentais somos melhores, mais civilizados e superiores a todos os
demais. Tudo o que fazemos está justificado à luz da superioridade das
nossas sociedades. Quem pegar em armas por estas ideias, como foi o
caso, estará a lutar pela civilização contra a barbárie.
Agora, Jair Bolsonaro.
Em
2015 afirmou sobre os índios brasileiros: “Os Índios não falam a nossa
língua, não têm dinheiro, não têm cultura. Como conseguem 13% do
território nacional?”. Já em 1998 afirmara ser “uma pena que a cavalaria
brasileira não tivesse sido tão eficiente quanto a americana, que
exterminou os Índios”. Esta forma de olhar o indígena, eivada da
superioridade do homem branco, “culto” e ocidental resultou naquilo que a
“Economist” apelidou de “Velório pela Amazónia”, terra do Índio,
alertando para a aceleração extraordinária do desmatamento daquela
floresta desde que Bolsonaro começou a instigar aí o garimpo e a
exploração agrícola.
Descontente com o relatório produzido pelo
INPE- Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais que denotava que a
floresta amazónica tinha perdido 739 quilómetros quadrados em maio de
2019, o dobro de 2017 e 30% mais que em maio de 2018, Bolsonaro demitiu o
seu diretor dizendo que o assunto devia ser discutido “entre
brasileiros”. Os Índios, supõem-se, não são “brasileiros”.
Finalmente, Salvini.
“Precisamos
de uma desinfeção maciça, rua por rua, praça por praça, bairro por
bairro”. Estas afirmações, proferidas quando anunciou um censo a efetuar
à população de origem cigana pressupõem o óbvio: quem não é branco e
ocidental é uma “infeção” que precisa ser eliminada.
Como em toda a sua
atuação desumana em que recusa a entrada de migrantes africanos salvos
no mar, multando em até um milhão de euros o capitão que por isso ousar
atracar numa doca italiana, Salvini transmite uma ideia e uma ideia só:
apenas quem é igual a nós, no parecer e no pensar, tem lugar nas nossas
sociedades.
Não renego a civilização europeia, menos ainda a
democracia e a liberdade. Mas também pugno pela igualdade e pela justiça
para todos. Infelizmente o nosso modelo e os seus valores não geraram
apenas Churchills, Adenauers e Monets. Eles também trouxeram esta ideia
de supremacia masculina, branca e ocidental personificada nestes tristes
personagens. Está na hora de aceitarmos que os valores ocidentais, da
democracia grega, da moral cristã, do iluminismo científico e da
democracia liberal produzem também supremacistas e racistas, promotores
da exploração e da desigualdade, campeões da devastação ecológica.
Tal como Juno, também a civilização ocidental tem duas faces. A História não morreu, apenas virou a cara.
IN "O JORNAL ECONÓMICO"
16/08/19
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