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IN "ESQUERDA.NET"
04/06/19
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"Laços", Domenico Starnone:
um romance sem pontas por atar
O que comove e choca neste romance será, por isso, a perfeição cirúrgica com que o autor confronta os leitores com a honestidade, mostrando como, não raras vezes, é a ausência dela a única forma de alicerçar relações e fazê-las durar
Em 2014, Domenico Starnone lançou o
romance “Laços”. Em menos de 150 páginas, o autor italiano conseguiu
esventrar as relações de uma família de quatro: os pais, Vanda e Aldo, e
os filhos, Sandro e Anna. O romance foi publicado em Portugal em Junho
de 2018, pela Alfaguara.
Vanda e Aldo estão casados há mais de 50 anos. O casamento,
aparentemente tranquilo, quase banal, esteve sujeito a tensões e
traições, raivas atiradas e disfarçadas, sapos engolidos, vontades
ignoradas, humilhações várias. Um dia, voltando de férias, já velhos,
encontram o apartamento revirado. Para mais, falta-lhes o gato. Haverá
que chamar a polícia, o raptor pedirá resgate?
Ao reorganizar os papéis, Aldo vê-se forçado a encarar o passado que
parecia repousar ileso. A paz armada em que a família vive inclui
segredos de todas as partes, mal-entendidos também, e por isso este é um
romance sobre perspectivas. Esventrar as relações familiares como
Starnone o fez só seria possível assim, mergulhando nas constituições
psicológicas das personagens e encarando sem complacência o que podem
esconder. Encarar a literatura também como terreno onde se espraiam
perspectivas, anulando-se a verdade única ou versões oficiais e limpas,
será o seu grande trunfo, já que é o que lhe permite uma literatura
honesta. O que comove e choca neste romance será, por isso, a perfeição
cirúrgica com que o autor confronta os leitores com a honestidade,
mostrando como, não raras vezes, é a ausência dela a única forma de
alicerçar relações e fazê-las durar.
Voltando atrás, Aldo encontra as cartas que Vanda lhe escreveu quando
ele, apaixonado por outra mulher, saiu de casa. A partir daí, vem tudo
em catadupa: a esposa traída, o abandono enquanto familiar e mulher, os
filhos deixados para trás, a infidelidade, a paixão a agir como catarse e
cataclismo. Na narrativa, onde cada detalhe mostra que a vida não é
feita ao acaso, desde o nome do gato do casal à forma como pai e filho
atam os sapatos, não parecem ficar pontas soltas.
Como o primeiro relato é o dela, é, durante uma grande parte da
leitura - que tem na primeira versão de Vanda o seu pontapé de partida
-, a única versão que o leitor tem, e portanto parecer-lhe-á a versão
oficial. Volvem-se umas páginas e chegam as outras versões, e tudo o que
parece um facto é afinal um imbróglio de mal-entendidos. A narrativa
continua a ser desfiada e esventrada e, quando a sua anatomia é
apresentada no seu todo, conclui-se pela construção sublime. Como se não
bastasse, a armadilha que o autor aponta é aquela em que faz cair o
benévolo leitor.
O que aparenta ser ileso é, afinal, um conjunto de silêncios. Manter
edifícios erguidos passa por calar, e para que não caiam convém que haja
mais silêncios do que a coragem da verdade.
Fica ainda latente a forma como os anos parecem vorazes, voláteis e
efémeros, como a chama da paixão, sonegando tudo à volta, pode ainda
sonegar uma ideia de futuro. Não apenas a família que fica, os filhos
que se transformam em desconhecidos, a mulher que leva a facada na
auto-estima, mas ainda o que poderá acontecer quando/se essa paixão
acabar. O que fazer com os destroços? Dará para retornar ao ponto de
partida? Como se limpa o que fica poluído?
Domenico Starnone mostra, em Laços, um olhar incisivo e
cirúrgico sobre as aparências. Provocante, o romance atordoa e mostra a
literatura em todo o seu esplendor de elemento catártico e de expansão
humana.
* Doutorada em Literatura, investigadora, editora e linguista.
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04/06/19
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