.
IN "PÚBLICO"
08/11/18
.
Um fascista eleito
não é um democrata
Ao contrário do que eu próprio pensava, existe ainda no nosso país um significativo perímetro da direita cujas convicções democráticas são, no mínimo, debéis.
1.Se levarmos em consideração as afirmações proferidas nas últimas
semanas por alguns dos principais expoentes do pensamento político da
direita portuguesa, seremos levados a concluir que Hitler, afinal de
contas, não era uma personagem assim tão repulsiva quanto a posteridade
histórica o catalogou, dada a circunstância de ter obtido excelentes
resultados eleitorais e beneficiado do apoio explícito de cidadãos
alemães que, em bom rigor, não podiam ser considerados fascistas. O
cabo-de-guerra austríaco foi, obviamente, tudo aquilo de que foi
justamente acusado: um ditador perverso, anti-semita, antidemocrata,
antiliberal e anti-humanista. Ocorre, porém, que suscitou adesão
eleitoral, o que, na perspectiva de alguns escribas contemporâneos,
ameniza o seu lado demoníaco e compele a procurar uma justificação
aceitável para o seu sucesso. Se seguirmos até ao fim a linha de
pensamento prosseguida por tais analistas, seremos levados a concluir
que os responsáveis pelas monstruosidades nazis foram precisamente todos
os demais, isto é, todos aqueles nunca se reclamaram do nazismo. No
fundo, Hitler terá sido uma pobre vítima dos seus encarniçados
adversários, que o teriam gerado, promovido e legitimado. Esses é que
deviam ter sido julgados em Nuremberga, acusados do nefasto crime de
terem criado Hitler pela razão singela de o terem combatido.
Nada me move contra a tentativa de compreensão de qualquer tipo de
fenómeno histórico, incluindo aqueles que se revestem de características
execrandas. Tenho contudo a noção de que há uma fronteira ténue entre o
trabalho de compreensão e a tentação da justificação. Julgo que no caso
das recentes eleições brasileiras essa linha foi várias vezes
ultrapassada. Na desmesurada ânsia de atacar a esquerda brasileira, e em
particular o Partido dos Trabalhadores, pessoas habitualmente sóbrias
produziram análises e comentários próprios de um estado de adiantada
embriaguez ideológica. Prova disso foi a forma como adulteraram
grosseiramente as posições assumidas por quem formulou críticas à
personalidade agora eleita para a presidência do Brasil. A falácia mais
recorrente consistiu em salvaguardar o carácter não necessariamente
fascistóide dos eleitores de Bolsonaro. Como se alguém alguma vez
tivesse afirmado tal coisa. A falácia, no seu primarismo, enuncia-se de
um modo muito simples: quando se acusa Bolsonaro de inclinações
fascistas está-se automaticamente a apelidar de fascistas todos os seus
eleitores, isto é, no presente caso, a maioria dos votantes brasileiros.
Convenhamos que como truque é infantil e como tese comporta uma ideia
muito perigosa. Por contraponto à noção de que ao votar num
protofascista um cidadão se torna automaticamente um defensor do
fascismo insinua-se que um protofascista eleito com votos de cidadãos
desprovidos dessa inclinação se transforma imediatamente num democrata.
Bolsonaro, mau grado todas as suas afirmações detestáveis, estaria
absolvido pela votação que obteve. Esta posição é a todos os títulos
indefensável, expurgando da democracia uma componente que lhe deve ser
consubstancial: a de um Estado de direito que escude as liberdades
públicas e privadas fundamentais.
Não deixa porém de ser curioso que uma parte expressiva da direita
portuguesa não só não tenha esboçado a mais ligeira crítica a Bolsonaro
como até se não tenha preocupado em esconder algum inusitado entusiasmo
com o seu sucesso. Isso revela que, ao contrário do que eu próprio
pensava, existe ainda no nosso país um significativo perímetro da
direita cujas convicções democráticas são, no mínimo, debéis. É certo
que houve excepções do centro e do centro-direita, como Francisco Pinto
Balsemão, Freitas do Amaral, Paulo Rangel, Rui Moreira, João César das
Neves e alguns outros. Houve mesmo quem se destacasse por uma invulgar
coragem, como foi o caso de David Dinis. No resto, o que se notou foi
indiferença ou complacência, senão mesmo algum subterrâneo
contentamento.
IN "PÚBLICO"
08/11/18
.
Sem comentários:
Enviar um comentário