09/11/2018

FRANCISCO ASSIS

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Um fascista eleito
não é um democrata

Ao contrário do que eu próprio pensava, existe ainda no nosso país um significativo perímetro da direita cujas convicções democráticas são, no mínimo, debéis.

1.Se levarmos em consideração as afirmações proferidas nas últimas semanas por alguns dos principais expoentes do pensamento político da direita portuguesa, seremos levados a concluir que Hitler, afinal de contas, não era uma personagem assim tão repulsiva quanto a posteridade histórica o catalogou, dada a circunstância de ter obtido excelentes resultados eleitorais e beneficiado do apoio explícito de cidadãos alemães que, em bom rigor, não podiam ser considerados fascistas. O cabo-de-guerra austríaco foi, obviamente, tudo aquilo de que foi justamente acusado: um ditador perverso, anti-semita, antidemocrata, antiliberal e anti-humanista. Ocorre, porém, que suscitou adesão eleitoral, o que, na perspectiva de alguns escribas contemporâneos, ameniza o seu lado demoníaco e compele a procurar uma justificação aceitável para o seu sucesso. Se seguirmos até ao fim a linha de pensamento prosseguida por tais analistas, seremos levados a concluir que os responsáveis pelas monstruosidades nazis foram precisamente todos os demais, isto é, todos aqueles nunca se reclamaram do nazismo. No fundo, Hitler terá sido uma pobre vítima dos seus encarniçados adversários, que o teriam gerado, promovido e legitimado. Esses é que deviam ter sido julgados em Nuremberga, acusados do nefasto crime de terem criado Hitler pela razão singela de o terem combatido.

Nada me move contra a tentativa de compreensão de qualquer tipo de fenómeno histórico, incluindo aqueles que se revestem de características execrandas. Tenho contudo a noção de que há uma fronteira ténue entre o trabalho de compreensão e a tentação da justificação. Julgo que no caso das recentes eleições brasileiras essa linha foi várias vezes ultrapassada. Na desmesurada ânsia de atacar a esquerda brasileira, e em particular o Partido dos Trabalhadores, pessoas habitualmente sóbrias produziram análises e comentários próprios de um estado de adiantada embriaguez ideológica. Prova disso foi a forma como adulteraram grosseiramente as posições assumidas por quem formulou críticas à personalidade agora eleita para a presidência do Brasil. A falácia mais recorrente consistiu em salvaguardar o carácter não necessariamente fascistóide dos eleitores de Bolsonaro. Como se alguém alguma vez tivesse afirmado tal coisa. A falácia, no seu primarismo, enuncia-se de um modo muito simples: quando se acusa Bolsonaro de inclinações fascistas está-se automaticamente a apelidar de fascistas todos os seus eleitores, isto é, no presente caso, a maioria dos votantes brasileiros. Convenhamos que como truque é infantil e como tese comporta uma ideia muito perigosa. Por contraponto à noção de que ao votar num protofascista um cidadão se torna automaticamente um defensor do fascismo insinua-se que um protofascista eleito com votos de cidadãos desprovidos dessa inclinação se transforma imediatamente num democrata. Bolsonaro, mau grado todas as suas afirmações detestáveis, estaria absolvido pela votação que obteve. Esta posição é a todos os títulos indefensável, expurgando da democracia uma componente que lhe deve ser consubstancial: a de um Estado de direito que escude as liberdades públicas e privadas fundamentais.

Não deixa porém de ser curioso que uma parte expressiva da direita portuguesa não só não tenha esboçado a mais ligeira crítica a Bolsonaro como até se não tenha preocupado em esconder algum inusitado entusiasmo com o seu sucesso. Isso revela que, ao contrário do que eu próprio pensava, existe ainda no nosso país um significativo perímetro da direita cujas convicções democráticas são, no mínimo, debéis. É certo que houve excepções do centro e do centro-direita, como Francisco Pinto Balsemão, Freitas do Amaral, Paulo Rangel, Rui Moreira, João César das Neves e alguns outros. Houve mesmo quem se destacasse por uma invulgar coragem, como foi o caso de David Dinis. No resto, o que se notou foi indiferença ou complacência, senão mesmo algum subterrâneo contentamento.

IN "PÚBLICO"
08/11/18

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