30/05/2018

MANUEL SÉRGIO

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O Desporto e 
a Transcendência

O poncio-pilatismo de alguns e a ignorância de muitos, liderada por uma oligarquia da mediocridade, tem permitido que uma certa ideia de desporto monopolize tudo o que a prática desportiva é e vale. O fisiologismo, o economicismo, o consumismo (e muitos mais “ismos”) informam qualquer diálogo galvanizante sobre o “fenómeno desportivo”. É da alta competição, que reproduz e multiplica as taras do neolioberalismo imperante, que se trata, quando se fala, hoje, de desporto. O desporto, assim se estuda nos mais rigorosos manuais da especialidade, é jogo e movimento e competição e projeto, tudo isto imbuído de “fair-play”, de incontida satisfação pelo esforço, de respeito pelos outros e por nós mesmos, de busca pela excelência, de reconhecimento de que não há atividades, físicas tão-só, mas atividades onde se encontram presentes, dialeticamente relacionados, todos os elementos que constituem a complexidade humana. Para mim, o desporto é um dos aspetos da motricidade humana, quero eu dizer: é um dos aspetos do “movimento intencional e em equipa da transcendência” (a minha definição de motricidade humana), ao lado do jogo desportivo, da dança, da ergonomia, da reabilitação, do circo, da motricidade de todas as idades, da gestão do desporto, etc. Três palavras dominam a minha definição de motricidade humana e portanto de desporto: movimento, intencionalidade e transcendência - definição que não se confunde com a conduta dos bandos de descamisados e rufiões que emergem das “claques”, nem com o discurso (que exala um cheiro a cadáver) de alguns “entendidos”, dirigentes ou não, que enxameiam a Comunicação Social. A imagem do desporto, para a esmagadora maioria das pessoas, esgota-se no espetáculo desportivo, publicitado pelas grandes centrais de manipulação, de intoxicação da opinião pública, ao serviço do integralismo economicista e de um clubismo próximo da loucura.

Portanto, se bem penso, a ideia de desporto mais em voga exige a presença de campeonatos e de campeões, de recordes e de árbitros e nada (nada mesmo) dos valores, sem os quais não há desporto. “A FIFA, cuja fundação data de 21 de Maio de 1904, em Paris, historicamente é a maior entidade congregadora de nações que já existiu. Reúne mais países associados do que qualquer outra instituição de qualquer natureza já conseguiu, mais até do que a ONU, que é de 26 de Junho de 1945, e o próprio Comité Olímpico Internacional, de 23 de Junho de 1894. Sua força política é conhecida e reconhecida” (Maurício Murad, A Violência e o Futebol, FGV Editora, Rio de Janeiro, 2007, p. 15). Deverá não esquecer-se que o próprio Hitler instigou baldadamente a que a sede da FIFA se transferisse para Berlim, a “capital do Reich de mil anos”, no intuito de conquistar um meio de invulgar poder que publicitasse a sua ideologia que hoje se esvai em senectude e descrédito. Para mim, o desporto, nomeadamente o futebol, é o fenómeno cultural de maior magia e de maior popularidade, no mundo contemporâneo. “Em consequência, estudar as atividades esportivas é um auxílio importante para a compreensão geral das sociedades humanas e para o entendimento de nossos sistemas simbólicos. Mais ainda, quando seus impactos coletivos são muito profundos, como é o caso do futebol (idem, ibidem, p. 16) – o futebol que é bem um “facto social total” e portanto reproduz e multiplica as taras do capitalismo dominante e, pela ausência de determinados valores, uma histérica mística clubista, capaz de deitar fora (um exemplo, entre muitos) os sonhos e os anseios, de intocável honestidade,  dos criadores do Sporting Clube de Portugal. Fui dirigente do Belenenses, em meados do século passado, durante 28 anos. Conheci sportinguistas,  como o Dr. Salazar Carreira, como o Prof. Mário Moniz Pereira, como o presidente João Rocha e o Jorge Vieira e o Fernando Peyroteo, o Álvaro Cardoso, o Otávio Barrosa (e tantos mais) que nunca fizeram do seu Clube uma sepultura dos mais lídimos ideais desportivos…

O desporto é, para mim (quantas vezes eu já disse isto?) um dos aspetos da motricidade humana, ou seja, do movimento intencional e em equipa da transcendência – transcendência de ordem físico-biológica, mas também social, sentimental, intelectual, política, moral, cultural  e espiritual. É o homem todo, no movimento da transcendência, que está em jogo, na prática desportiva. Para conhecê-lo, portanto, há que integrar conhecimentos advindos da biologia e da psicologia e da medicina e das ciências cognitivas e da filosofia, etc., etc. O método, para conhecer o ser humano, é multidisciplinar. E portanto, como multidisciplinar deverá ser o treino desportivo, que prepara o atleta para transcender e transcender-se (quem não se transcende “dura”, mas não “vive”). Mas… o que significa a transcendência? Para mim, a transcendência diz-nos que o ser humano não é tanto um imitador, mas um criador; e, porque um criador, capaz de superação, de rutura, de abertura ao Absoluto; e, ainda como um criador, informado em todas as circunstâncias, como já o disse Roger Garaudy, há muitos anos, mais por uma filosofia da fé e do ato (ou da motricidade humana, digo eu) do que por uma filosofia do “ser” e do “logos”. Há um magnífico livro do Prof. José da Costa Pinto (A Emergência da Subjectividade em Roger Garaudy, Publicações da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica, Braga, 2003) onde se analisa o conceito de transcendência, em Garaudy. Quer esta palavra dizer, neste filósofo, que o futuro do homem não se deduz somente da sua herança biológica, social, cultural ou educativa; que a liberdade nasce com a possibilidade de projectar vários atos possíveis e que portanto a opção, para o ser humano, não se faz entre dados, mas entre possíveis” (p. 81). No caso do desporto, portanto, o positivismo e o neopositivismo, que fecham o pensamento na conduta motora, e que fazem da ação um simples reflexo da ordem estabelecida, afastando-a de qualquer projeto qualitativamente novo, serão de questionar e rejeitar. O “desporto pelo desporto” e os seus fervorosos defensores não devem ter lugar num desporto de excelência.

O máximo de transcendência esplende, na História, com a Ressurreição de Cristo. Com a Ressurreição, Cristo ultrapassou as hipóteses aterradoras da morte e proclamou que é possível o impossível, ou seja, que o ser humano é bem mais do que o tempo e o espaço e que a vida tem o sentido que uma vida puramente material não poderia dar-lhe. No meu modesto entender: se somos criadores da História e responsáveis pela História, somos, com certeza,   mais do que o espaço e o tempo da história humana. Se tenho a certeza racional do que venho de escrever? Não, não tenho. Só que, no humano, nem tudo se reduz ao conhecimento racional. O amor é bem mais do que razão. Quem ama conhece e… não pensa muito! Mas acredita, tem fé! E afinal o amor é a primeira das “razões” de qualquer iniciativa histórica.  A transcendência    é também um ato de fé de um ser que não é “algo”, mas “alguém” capaz de superar o reflexo do mundo em que vive e criar o movimento do projeto, onde Deus cabe como realidade fundante. Com efeito, na Natureza, nada surge como acabado e definitivo. Mas de tudo emerge o mistério, porque nada possui propriedades objetivas, independentes da razão humana. E a razão humana alcança sempre, em todas as coisas, após o movimento intencional da transcendência, o mistério… que não resolve! A filosofia e a ciência de Galileu e Descartes e Newton e Kant relegaram o mistério para bem longe do discurso científico, onde não cabe portanto tudo o que se sente e não se sabe explicar, como o amor, o sonho, o êxtase, a poesia. Aqui, caminha-se, pela transcendência, do reflexo ao projeto, da quantidade à qualidade, da explicação à compreensão, mesmo que em mancha de informes difusos. Aqui (ou seja, no amor, no sonho, no êxtase, na poesia) mergulhamos num sentimento inenarrável de plenitude, também sem se saber bem porquê. Será o campeão um místico? Quem, tanto como ele, se transcende?  

IN "A BOLA"
25/05/18
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