Carta Aberta ao
Doutor António Damásio
Senhor Doutor
Sou
um idoso de 84 anos de idade e levo quase 60 anos de vida a escrever
sobre o Desporto e a fazer do Desporto (o fenómeno cultural de maior
magia no mundo contemporâneo) um pretexto para pensar a Ciência e a
Filosofia. O facto de manifestar pelo Senhor Doutor uma particular
simpatia resulta da sua síntese Ciência-Filosofia, patente em todas as
suas obras, como atualmente bem poucos o sabem fazer - síntese de
flagrante atualidade que, sem rejeitar a metodologia objetivante da
corrente empirista, acentua também que o empirismo não pode ser o
paradigma exclusivo das ciências humanas. A sua simpatia por Espinoza, o
qual parte da certeza que só existe uma substância única e infinita
(que o mesmo é dizer: possui uma infinidade de atributos) significa,
para si, o reconhecimento dos limites do racionalismo, em Descartes, com
especial relevo para o dualismo antropológico. Em Espinoza, a
substância infinita e única é Deus ou, se quisermos, a própria Natureza,
ou seja, o Deus de Espinoza é inteiramente imanente, não aflora n’Ele
um assomo sequer de transcendência. Há um aforismo de S.Tomás de Aquino
que poderá recordar-se, neste passo: “operari sequitur esse” (o operar
segue o ser). Ora, no seu último livro, A Estranha Ordem Das Coisas
(Temas e Debates, Círculo dos Leitores, 2017) é nos sentimentos que
encontraremos a causa das causas da evolução humana - nos sentimentos e
na homeostasia, já que “os sentimentos, como colaboradores da
homeostasia, são os catalisadores das respostas que deram origem às
culturas humanas” (p. 44). Entendo agora por que respondeu assim à
entrevista do Expresso, de 28 de Outubro p.p.: “Deixei de me
chamar um neurocientista. Sou um biologista interessado na mente e no
cérebro”. E acrescenta, na mesma entrevista: “Isto faz parte das muitas
coisas que mudaram com este livro. O primado da biologia”.
Mas
primado da biologia, porquê? Porque, na expansão da mente humana, parece
necessário estudar, antes do mais, “os objetos e os acontecimentos no
mundo, em torno do nosso organismo, presentes de facto ou recuperados
pela memória, e os objetos e os acontecimentos do mundo interior”. E
ainda: “Em primeiro lugar, os principais dispositivos sensoriais com que
o mundo em redor e no interior de um organismo interagem com o sistema
nervoso. Em segundo lugar, os dispositivos que continuamente reagem de
forma emotiva à presença mental de qualquer objeto e acontecimento. A
reação emotiva consiste na alteração do rumo da vida, no interior antigo
dos organismos. Estes dispositivos são conhecidos como impulsos,
motivações e emoções” (pp. 125/126). Mas o António Damásio, com a
paciência narrativa de um criador, chega a um ponto em que se assume
como um biólogo de invulgar talento e escreve: “A unidade básica para a
criação das mentes é a imagem, seja ela a imagem de uma coisa, do que
uma coisa faz, ou do que a coisa nos leva a sentir; ou a imagem daquilo
que pensamos da coisa; ou as imagens das palavras que traduzem cada uma
destas possibilidades ou o seu conjunto” (p. 134). Mas “as imagens estão
de tal modo desesperadas pela companhia do afeto que até aquelas que
são elas próprias um sentimento podem ser acompanhadas por outros
sentimentos (…). Não há ser, no sentido restrito do termo, sem uma
experiência mental espontânea da vida, um sentimento de existência (…). A
completa ausência de sentimentos implicaria a suspensão do ser, mas até
uma ausência menos radical dos sentimentos comprometeria a natureza
humana” (p. 147). E a sua penetrante investigação (e ensaio?) não nos
deixa sem uma definição de sentimentos: “os sentimentos são a
experiência de determinados aspetos do estado da vida num organismo”
(p.151).
Na página 169, o António Damásio tenta aprofundar a
noção de sentimentos: “Para compreender a origem e a construção dos
sentimentos e para avaliar a sua contribuição para a mente humana, é
necessário inseri-los no panorama da homeostasia (…). A homeostasia
eficaz, ou mesmo ótima, exprime-se como bem-estar e até alegria; por
outro lado, a felicidade causada pelo amor e pela amizade contribui para
uma homeostasia mais eficiente e promove a saúde (…). Curiosamente, o
custo homeostático de uma doença física pode ativar o mesmo eixo
hipotalâmico-pituitário e causar a libertação de dinorfina, uma molécula
que conduz à tristeza e à depressão”. Não sei se, neste passo, não me é
lícito invocar o auxílio do Edgar Morin, ao sublinhar que o sapiens é demens
também: “é um ser de uma afetividade intensa e instável (…), um ser
apreciador da vida, ébrio, estático, violento, terno, um ser invadido
pelo imaginário, um ser que sabe da morte e não pode acreditar nela, um
ser que segrega o mito e a magia (…). Somos constrangidos a ver que o homo sapiens é homo demens (Le Paradigme Perdu,
pp. 28/29). Esta problemática da sapiência e da demência, da ordem e da
desordem, do mito e da magia decorre da hipercomplexidade do cérebro,
da hipercomplexidade que o ser humano é. Mas eu tenho de voltar ao seu
livro (onde se nota, confesso, uma implacável exigência de perfeição):
“Se não houver distância entre corpo e cérebro, se corpo e cérebro
interagirem e formarem uma unidade organísmica, então o sentimento não é
uma percepção do estado corporal no sentido convencional do termo. A
dualidade sujeito-objeto, ou percetor-perceção, deixa de existir. Ao seu
invés, relativamente a esta parte do processo, encontramos unidade. O sentimento é o aspeto mental dessa unidade (p. 180). Se bem penso, remato assim este parágrafo: se tudo é sistema e portanto um todo organizado, a unidade é inevitável…
Escreve
o Doutor António Damásio : “O dualismo arraigado que teve início em
Atenas, que teve Descartes como patrono, que resistiu aos ataques de
Espinoza e que tem sido ferozmente explorado pelas ciências
informáticas, é uma posição que o tempo vai abandonar impiedosamente “.
No entanto, “aumentar o conhecimento da biologia, desde as moléculas aos
sistemas, reforça o projeto humanista” (p. 331). Sou, “minimus inter
pares”, um seu discípulo. E só através das suas belas, densas e
ressonantes páginas, já que não sou biólogo. No entanto, já há bem 50
anos, que me distanciei do dualismo antropológico cartesiano e, anos
depois, cheguei mesmo a erguer um corte epistemológico, que arrostou
sempre com a ameaça de uma solidão crescente, em relação ao treino
desportivo e à educação física desses anos idos… por sofrerem de
cartesianismo desmesurado! Mas, após a leitura do seu magnífico livro,
que eu voltarei a ler, o mais depressa possível, permita-me deixar-lhe
as seguintes interrogações de um estudioso da filosofia e da
epistemologia: São os nossos genes, ou os nossos sentimentos, que dão
mais vida à nossa vida? Não tenho dúvidas que somos bios antes de sermos logos,
mas não é verdade que o Padre Teilhard de Chardin já dizia o mesmo, sem
o rigor do conhecimento biomédico do Doutor António Damásio? Acredita
que a história da evolução é uma ascensão, desde o biológico até à
inteligência-consciência? Cito de cor uma frase de Assim falava Zaratustra,
de Nietzsche: “sou inteiramente corpo e mais nada”. Ressoa esta frase
nas conclusões científicas a que já chegou? O desporto pode
considerar-se uma tecnologia do corpo, ao lado de outras, pois que se
pensa que a eficácia é, hoje, a principal fonte de progresso? Para mim,
não há jogos, há pessoas que jogam. A ética radica na biologia?
Atualmente, na alta competição, ninguém pratica desporto para ter saúde,
pratica-o porque tem saúde. Não é verdade que este desporto reproduz e
multiplica as taras da cultura dominante?
Senhor Doutor António
Damásio, já li, em língua portuguesa, todos os seus livros, que o mesmo é
dizer: devo-lhe muito! Tenho diante de mim o livro de Lévinas, En découvrant l’existence avec Husserl e Heidegger:
“A consciência, mais que totalidade é totalização”. É verdade: tudo é
processo. E quem o estudou, como eu, fica intelectualmente outro, embora
as minhas inúmeras limitações. Se observarmos o que se produz, no
âmbito da filosofia analítica, sobre o “MInd-Body Problem”, constata que
algumas das suas teses já há muito se conhecem, na filosofia, mas… sem o
seu rigor científico! Sou em crer, no entanto, que a linguagem da
biologia não abrange a complexidade do ser humano, o qual faz uso
preferencial da linguagem do sentido. É impossível uma integral
objetividade do ser humano. A ciência não é uma certeza, mas uma “ideia
reguladora” (expressão que aprendi com o filósofo brasileiro Hilton
Japiassu). Creia-me, por isso, o seu admirador muito grato.
* Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto
IN "A BOLA"
14/01/18
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