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Quando a FCT perdeu o veto
Associação que gere endereços .pt
foi criada com um sócio que não existe,
dinheiro do Estado e sem concurso
Em 2013, Luísa Gueifão, diretora da DNS.pt, apresentou-se como representante da IANA para criar a associação que gere o .pt, apesar de não haver representante da IANA em Portugal. Entre 2013 e 2016, foram investidos mais de 246 mil euros em fundos de pensões para os 16 funcionários.
Os últimos dois anos da DNS.pt ficaram marcados por uma forte
tendência de investimento: Além da aplicação de 302 mil euros em
Obrigações do Tesouro de Rendimento Variável do Estado Português, a
associação que explora, sem fins lucrativos, o domínio de topo de
Portugal (.pt) aplicou dois milhões de euros na compra de uma nova sede,
numa das zonas mais caras de Lisboa, com mais de 800 m2 para
albergar 16 funcionários. A Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT),
que representa o Estado dentro da Associação, votou a favor, mas, mesmo
que estivesse contra, apenas poderia travar os investimentos, caso
garantisse a maioria absoluta com os votos da associação de consumidores
DECO, da Associação do Comércio Eletrónico e da Publicidade Interativa
(ACEPI), ou de um representante «designado» pela entidade que gere os
domínios a nível internacional que há quem garanta não existir, mas que
consta nos estatutos a fechar o lote de associados que formaram a
DNS.pt. A associação foi criada em 2013 com o propósito de gerir e
explorar os endereços terminados em .pt, sem concurso público e
beneficiando de um investimento de mais de 1,4 milhões de euros
provenientes do erário público.
O investimento na nova sede
desencadeou algumas vozes críticas no meio tecnológico pelo facto de a
esmagadora maioria dos serviços da DNS.pt ser prestada remotamente pela
Internet, e alegadamente não se justificar a compra de um espaço situado
em zona nobre com uma média superior a 50 m2 por pessoa (a
título ilustrativo: a Exame Informática, a Exame, o Jornal de Letras e a
Visão têm cerca de 70 pessoas em cerca de 500 m2). Apesar
destes argumentos, a FCT considera que a decisão de compra é acertada:
«Relativamente à localização, a operação justifica-se na perspetiva de
ser um investimento com grande potencial de valorização, garantindo
assim uma reserva patrimonial para a associação e permitindo ao mesmo
tempo a redução dos custos operacionais do atual aluguer».
A direção da DNS.pt, atualmente liderada por Luísa Gueifão, reitera que o investimento está dentro da legalidade: «A
aquisição cumpriu integralmente os estatutos, tendo obtido parecer
favorável do Conselho Fiscal e sido deliberada de forma unânime pela
Assembleia Geral. A escolha da localização teve como critério óbvio a
valorização do imóvel».
Em contrapartida, o Capítulo Português da
Internet Society (ISOC Portugal) apresenta uma versão completamente
dissonante de FCT e DNS.pt num relatório que foi enviado em jeito de
denúncia para o Governo, grupos parlamentares e FCT. «O Estado Português
não tem acesso às contas da DNS.pt, mas os representantes dos registrars,
que revendem endereços, têm acesso às contas e podem discutir os preços
praticados pela DNS.pt, porque fazem parte da associação», denuncia
José Legatheaux Martins, um dos pioneiros da Internet em Portugal e
presidente da ISOC Portugal, num comentário que pretende resumir várias
das críticas lançadas contra a atual direção da Associação.
Nos
relatórios e contas da DNS.pt há também um número que confirma que a
Associação trata os respetivos funcionários com algumas regalias que nem
sempre abundam no mercado laboral português: entre 2014 e 2016, a
associação investiu mais de 246 mil euros num fundo de pensões para os
funcionários (o relatório e contas de 2017 não é conhecido ainda). Sem
indicar os valores totais despendidos, a DNS.pt limita-se a referir que,
«no quadro da gestão rigorosa e sustentável da Associação, inclui-se
naturalmente a valorização dos recursos humanos, que a DNS.PT considera
um capital essencial».
A FCT não se
pronuncia sobre a razoabilidade ou a legitimidade dos fundos de pensões,
eventualmente, aplicados junto de um banco para funcionarem como um
complemento de reforma – mas também só poderia travar este investimento,
se conseguisse garantir a maioria absoluta dos votos dos associados.
Contactado
pela Exame Informática, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino
Superior (MCTES) remeteu as respostas a este assunto para a FCT.
Atualmente,
a DNS.pt gere o domínio de topo de Portugal, determinando os preços que
servem de referência para as empresas especializadas na revenda de
endereços da Internet terminados em .pt. Em 2017, a DNS.pt anunciou
haver mais de 976 mil endereços registados em .pt – e enalteceu o ano
passado «como um dos melhores de sempre», com mais de 100 mil endereços
registados e a ascensão aos primeiros lugares dos países que mais
cresceram no registo de endereços na Europa. Em 2016, a Associação
faturou mais de 2,5 milhões de euros. Nesse mesmo ano, as remunerações ilíquidas (antes da contribuição para a segurança social e impostos) dos três membros executivos do Conselho
Diretivo ascenderam a 151.738 euros. No total, remunerações, prémios e
compensações com pessoal superaram os 720 mil euros em 2016.
Quando a FCT perdeu o veto
Foi em janeiro de 2014 que a FCT perdeu o poder de vetar a aplicação de
receitas ou a dissolução da DNS.pt, devido a uma retificação de
estatutos ordenada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) que,
segundo a Exame Informática apurou, terá decorrido do facto de a DNS.pt
ser uma entidade de direito privado – e por isso não poder ter
associados com um direito de voto que suplante as decisões de outros
associados. E nem o facto de gerir um bem que pertence ao Estado
Português (o .pt) terá sido suficiente para evitar a perda do direito de
veto da FCT pela via legal.
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Luísa Gueifão, líder da DNS.pt, apresentou-se como representante da IANA aquando da constituição da associação |
O .pt nem sempre foi explorado por uma entidade privada: entre a
década de 1990 e 2013, o domínio de topo de Portugal foi gerido pela
Fundação para a Computação Científica Nacional (FCCN). A mudança ocorreu
quando o governo liderado por Passos Coelho decidiu integrar na FCT
todas as competências da FCCN – com exceção da gestão do domínio de topo
de Portugal, que foi entregue a uma associação de direito privado,
dando sequência a uma estratégia de emagrecimento da administração
pública.
Aquando da constituição da DNS.pt, a FCT, que aplicou na
associação 1,4 milhões de euros para suprir «todas as responsabilidades
contratuais existentes, que implicavam despesas da mesma ordem de
grandeza», detinha o poder de veto sobre a dissolução da associação, a
aplicação de resultados ou sobre o orçamento e o plano de atividades. Os
restantes associados não tinham poder de veto, mas também não lhes terá
sido solicitada qualquer verba para participar na associação. Com a
alteração de estatutos ordenada pela PGR, a intervenção do Estado passou
a estar limitada ao número de votos do representante da FCT.
Rita
Trabulo, advogada que coordena o Departamento de Corporate da CCA
Ontier, admite que a designação «sem fins lucrativos» poderá induzir em
erro os leigos ao dar a entender que uma associação não pode ter lucros –
mas logo explica que essa classificação apenas significa que o «lucro não é distribuído aos seus associados». Rita Trabulo recorda ainda que nas sociedades sem fins lucrativos «o
lucro anual deve ser aplicado para a prossecução dos fins definidos nos
estatutos», mas também chama a atenção para o 11º artigo desses mesmos estatutos
da DNS.pt, que dá à associação a possibilidade de gerar receitas com
«os rendimentos dos bens próprios, incluindo depósitos e aplicações
financeiras e fundos de reserva». É devido à presença deste artigo nos
estatutos que a advogada admite como potencialmente legal o investimento
em mais de 300 mil euros nas obrigações emitidas pelo Estado Português.
Sobre o fundo de pensões, a advogada da CCA Ontier
considera: «É igualmente lícito que uma associação sem fins lucrativos
subscreva fundos de pensões para os respetivos funcionários».
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Legatheaux Martins, presidente da ISOC Portugal: O Estado Português pode tirar o .pt à DNS.pt mas não tira de lá o dinheiro que já investiu |
Apesar da possível legalidade dos investimentos, Rita Trabulo
recorda que é necessário não perder de vista o acordo entre FCT/Estado
Português e a DNS.pt. «O facto de a associação ter como objeto a
exploração (gestão, operação e manutenção) de um bem do Estado, poderá
ter implicações na aplicação desses lucros, caso tal esteja definido no
acordo que titula essa exploração, que poderá implicar determinadas
obrigações para a associação. Não tendo sido definidos limites ou
obrigações, a associação reger-se-á pelas regras gerais quanto à
aplicação do resultado positivo do exercício», acrescenta a advogada.
Ainda
que permitida pelos estatutos, a rentabilidade alcançada através de
investimentos em produtos financeiros não figura como objetivo a
alcançar pela associação. E essa é uma das provas que levam a ISOC
Portugal a concluir que o Governo Português fracassou ao não definir uma
estratégia nem objetivos financeiros para a DNS.pt. José Legatheaux
Martins dá como exemplos da falta de limites estratégicos o alegado
patrocínio aos congressos da ACEPI, associado que representa os
revendedores de endereços da Internet dentro da DNS.pt, e também aponta o
dedo à participação no selo de garantia Confio.pt, que se destina a
sites de comércio eletrónico e que não lhe merece grande confiança do
ponto de vista técnico ou de segurança.
«Sim, o
Estado Português pode retirar o domínio .pt da DNS.pt , mas não retira o
dinheiro que lá colocou (aquando da criação da associação, em 2013)»,
refere o presidente da ISOC Portugal.
No relatório
que publicou no final de Dezembro, a ISOC Portugal denuncia ainda o
potencial conflito de interesses causado pela admissão da ACEPI como
associada da DNS.pt. Em causa está a possibilidade de os registrars
debaterem e votarem o processo de formulação de preços dos endereços de
Internet terminados em .pt. «Haveria que definir qual a política de
preços dos endereços (terminados em .pt) praticados pela DNS.pt, tendo
em conta a concorrência. Só com uma estratégia definida e uma análise de
custos, a Associação deveria ter o poder de determinar os preços»,
refere Legatheaux Martins.
Sobre o potencial
conflito de interesses, a direção da FCT limita-se a recordar que o
modelo de gestão em vigor foi definido durante a legislatura do anterior
governo (de Passos Coelho).
A direção da DNS.pt desvaloriza o potencial conflito de interesses e lembra que, desde 2013,
nunca houve qualquer alteração de preços, «o que significa que o preço e
a estrutura de preçário atualmente praticada foi definida pelo registry anterior (a FCCN), pelo que a questão não se coloca».
Apesar de nunca o ter feito, a DNS.pt não enjeita alterar os preços dos domínios – e dá como prova de «independência
e autonomia» face à ACEPI e às empresas de revenda de endereços de
maior envergadura o lançamento de «um processo de alteração do modelo de
preços praticados, de forma a acabar com um sistema de descontos que
tem por base o número de registos realizados».
A
ISOC Portugal questiona ainda o facto de a DNS.pt ter como únicos
associados a FCT, a ACEPI e a DECO, recomenda a integração de mais
associados, e dá como exemplo a seguir o Comitê de Gestão de Internet,
do Brasil. A direção da DNS.pt opta por não responder sobre a
disponibilidade para aceitar a entrada de novos sócios, que atualmente
está limitada à propostas dos atuais associados: «Os órgãos
sociais da DNS.pt defendem um modelo de multistakeholders, estando nos
seus estatutos previstos todos os mecanismos que definem a eventual
entrada de novos associados», refere a Associação.
A IANA não está em Portugal
A alegada falta de representatividade dos atuais associados da
DNS.pt ganha contornos de controvérsia quando a análise incide sobre os
artigos dos estatutos da Associação que elencam como um dos associados
«o representante designado pela IANA – Internet Assigned Numbers
Authority como responsável pela delegação do ccTLD.pt».
A
IANA é uma unidade recentemente integrada na ICANN, entidade sedeada em
Los Angeles, EUA, que supervisiona a Internet no mundo. A delegação do
ccTLD.pt é uma denominação usada na gíria quando alguém do meio
tecnológico se refere ao representante do Estado Português na IANA e na
ICANN.
A ISOC Portugal não hesita pôr em causa a
lisura dos estatutos da DNS.pt, recordando que a IANA e a ICANN não têm
qualquer representante em Portugal. «Quanto muito é o governo português
que tem um representante na ICANN ou na IANA», esclarece Legatheaux
Martins.
Contactado pela Exame Informática, Andrea
Becalli, responsável da ICANN para o Sul da Europa, confirma que não há
um representante da IANA em Portugal, até porque «esse cargo não
existe».
Atualmente, o alegado representante
«designado pela IANA» é assegurado pela FCT. Ana Neves, profissional da
FCT com currículo na promoção da sociedade da informação em Portugal, é a
pessoa que detém essa função de representar o governo português na IANA
e na ICANN e que, à luz dos estatutos da DNS.pt, assume a cadeira de
associado com poder de voto DNS.pt.
As explicações
FCT também não permitem tirar todas as dúvidas. Por e-mail, a Fundação
responsável pela atribuição de bolsas e apoios a projetos científicos
limita-se a negar que os estatutos refiram que a IANA designou um
representante para Portugal e reitera: «quem é associado fundador é o “representante designado pela IANA – Internet Assigned Numbers Authority” como responsável pela delegação do ccTLD.pt”, e não a IANA», garante a FCT.
A
DNS.pt não dá explicações quanto ao facto de os estatutos referirem um
suposto representante designado pela IANA» quando a IANA não designa
ninguém como representante para Portugal, e apenas afirma que é «incorreto referir que a IANA é associada da DNS.pt».
Que
a IANA não tem um representante em Portugal não existem sequer dúvidas –
mas isso não impediu Luísa Gueifão, jurista que hoje lidera a DNS.pt e
que, durante vários anos, assumiu a pasta da gestão do domínio .pt
dentro da extinta FCCN, de se apresentar, em maio de 2013, num cartório
notarial de Lisboa como «designada pela IANA – Internet Assigned Number
Authority», a fim de assinar a constituição da DNS.pt. O que confirma
que, antes de ser eleita como diretora da DNS.pt, a jurista assumiu
funções como associada.
No documento de constituição da
associação constam ainda as assinaturas de Alexandre Nilo da Fonseca
como presidente da ACEPI, e Vasco Colaço e Alberto Regueira na qualidade
de presidente e vice-presidente da Deco, respetivamente. Nessa altura, o
Estado Português ainda tinha a pretensão de poder exercer a supervisão
sobre a DNS.pt. E é por isso que o documento da constituição da DNS.pt
conta igualmente com a assinatura de Miguel Seabra, que à data era
presidente da FCT.
NOTA da REDAÇÃO: O valor recebido pela DNS.pt
foi atualizado com informação referida pela associação. Na versão
anterior deste texto é referido apenas o montante máximo (1,9 milhões de
euros) que a DNS.pt podia receber do erário público, ao abrigo de um
decreto-lei publicado para o efeito. Por seu turno, a FCT esclareceu
ainda que o investimento de 1,4 milhões de euros que foi efetuado
aquando da constituição da DNS.pt tinha como objetivo cobrir todas as
responsabilidades da associação.
IN "EXAME INFORMÁTICA"
17/01/18
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