17/11/2017

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ONTEM  NO 
"OBSERVADOR"
“Ainda é muito cedo para falar de
 uma perestroika à angolana”

O investigador Jon Schubert, especialista em Angola, diz que a reação dos angolanos à exoneração de Isabel dos Santos é "quase eufórica", mas refere que há interesses que "ainda não foram tocados". 

O investigador Jon Schubert falhou a exoneração de Isabel dos Santos como presidente do conselho de administração da Sonangol por um dia. Pela primeira vez desde 2011, o académico suíço, da Universidade de Genebra, regressou ao país onde viveu oito anos da sua infância, entre 1984 e 1992. Nesses anos, o pai, pastor de uma igreja evangélica, foi enviado para Angola para trabalhar como missionário. A intenção era ir para o Uíge, no norte do país, mas a guerra não deixou que a família de Jon Schubert fosse para lá de Luanda.
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Foi um período que lhe deixou marcas no discurso — ainda hoje se despede das entrevistas com um inconfundivelmente angolano “estamos juntos” — e também no percurso profissional. Há vários anos que Jon Schubert se foca no estudo da política e economia de Angola, desde um ponto de vista antropológico.

O resultado do seu trabalho é o livro “Working The System – A Political Ethnography of the New Angola” (Cornell University Press, 2017), onde reflete sobre as dinâmicas entre o povo angolano e o poder, assentes num contrato social possível. Agora, diz ao Observador que a cautela com que escreveu o seu livro — cujo período de pesquisa terminou com a nomeação de João Lourenço como candidato do MPLA às presidenciais de agosto deste ano — talvez “esteja agora um pouco ultrapassada”. “Porque se há realmente vontade de fazer reformas fundamentais por parte do novo Presidente, então talvez essas mudanças possam ser mais abrangentes do que se pensava”, explica.
Jon Schubert confessa-se “surpreendido” com as medidas de João Lourenço, mas ainda assim refere que “ainda é muito cedo” para falar de uma Perestroika em Angola e sublinha que há “interesses económicos que ainda não foram tocados”.

Está surpreendido com as últimas decisões de João Lourenço?
Surpreendido, sim. Acima de tudo com esta rapidez. Tendo estado em Luanda, não estou tão surpreendido como talvez estaria antes da minha estadia. Mas ainda há três semanas as pessoas diziam que era preciso pelo menos seis meses até João Lourenço consolidar a posição e que ele tinha de andar com muita cautela, porque os riscos são grandes e há armadilhas de todo o lado. E o facto de ele avançar tão rápido e de maneira tão decisiva é indicativo de que a posição do ex-Presidente é muito menos forte dentro do partido do que aquilo que se pensava antes das eleições.

Em agosto, antes das eleições, disse ao Observador que a promessa de João Lourenço contra a corrupção “era pouco credível”…
É isso! E agora…

… e também referiu que ele, como qualquer político na sua situação, tentava apenas apelar à “mudança” junto da população ao mesmo tempo que apelava à “estabilidade” para dentro do MPLA. Tendo em conta as decisões desta quarta-feira, João Lourenço pode agora estar a pôr em causa a estabilidade do partido?
Não. Acho que o que isso representa é uma tomada de consciência dentro do MPLA de que a única maneira de salvar o partido, em termos de futuro político, é atacando algumas coisas de maneira decisiva. Agora, estou um pouco arrependido do que disse em agosto, porque estou a ver que há coisas que realmente estão a mudar. Até agora quase não passava de política simbólica, mas no contexto angolano essa política simbólica é muito importante, porque abre espaços onde as pessoas podem de repente criticar o ex-Presidente abertamente.

João Lourenço quer salvar o MPLA e o regime aos olhos da população, que há muito tempo olha para os filhos de José Eduardo dos Santos com algum desdém, ou é mais profundo do que isso?
Eu gostava de acreditar que é mais profundo do que isso. É a impressão que eu tive e é a impressão dos angolanos com quem falei nas últimas quatro semanas. É o que eles dizem e também gostariam de acreditar, que essas mudanças vão ser de facto efetivas e profundas. Mas o que ainda não aconteceu, e isso também seria na situação atual quase suicida, é atacar os privilégios económicos dos generais. Isso não aconteceu e não vejo que aconteça com a mesma rapidez com que agora se atacaram os privilégios da família Dos Santos. Mas isto demonstra que dentro do partido há um grande descontentamento, embora haja partes do partido que ainda continuam a opor-se a esse tipo de reformas. O facto de João Lourenço ser muito mais popular agora, depois das eleições do que antes delas, e de ter um certo respaldo da população, confere-lhe uma legitimidade no seio do partido que lhe permite avançar com essas reformas e retirar privilégios aos filhos do ex-Presidente.

Depois das notícias desta quarta-feira, há um sentimento de surpresa generalizado. Se calhar andámos todos enganados em relação ao poder efetivo do clã Dos Santos, porque agora, de uma penada, João Lourenço afastou três dele: Isabel dos Santos, Tchizé dos Santos e Córeón Dú…
… e até já há boatos de que o Zenu [José Filomeno dos Santos, diretor do Fundo Soberano de Angola] se vai demitir.

Isso mesmo. Quer isto dizer que afinal eles não têm assim tanto poder? Ou é João Lourenço que simplesmente está a fazer uso de um poder que lhe é reconhecido pela Constituição mas que ninguém no clã Dos Santos esperava que ele viesse a usar?
Acho que é esse o caso. Há pessoas que dizem que João Lourenço preparou um golpe de mestre, que ele é um grande jogador de xadrez e que já é uma coisa que prepara há muito tempo. Disseram-me que esses secretários de Estado mais novos, que ele nomeou, já entraram com os dossiers preparados. Isto demonstra que eles já estavam preparados para tomar posse e trabalhar no sentido de cumprir as orientações do novo Presidente. E é verdade que João Lourenço foi o compromisso entre o ex-Presidente e o partido, mas acredito que José Eduardo dos Santos não pensava que esses poderes quase absolutos que ele próprio se outorgou através da nova Constituição iriam ser utilizados pelo novo Presidente contra ele próprio.

Há pouco referia a questão do poderio militar e dos interesses económicos dos generais. Será que João Lourenço tem interesse em chegar até este patamar ou não é do seu interesse, tendo em conta as suas ligações ao setor da defesa e do exército?
Nas próprias Forças Armadas há generais que também têm os seus interesses económicos. E acho, nesta altura, seria arriscado para o novo Presidente tentar quebrar esses interesses económicos de quem detém o poder coercivo das Forças Armadas.

É curioso porque, na altura das eleições, era quase unânime que um dos pontos fortes de João Lourenço era o facto de ter os militares do seu lado e que por isso nunca haveria um big bang em Angola. Isto já não é certo?
Acredito que ainda é assim, mas há pouco perguntava-me até que ponto é que o combate à corrupção era sério. Essas medidas que foram tomadas agora demonstram que o combate parece ser sério — mas também é seletivo. Há outros interesses económicos que ainda não foram tocados. É precisamente o caso dos generais. Há outros também dentro do partido que também foram metidos no sistema Dos Santos e que até agora continuam com os seus cargos dentro do partido. E tendo em conta que o novo Presidente precisa do apoio do partido para fazer essas reformas, talvez esses indivíduos ainda possam continuar durante um certo tempo a manter-se nos poderes que têm. Mas isto é só especulação.

O certo é que nos últimos dias temos João Lourenço a decapitar, por mais forte que o termo seja, a liderança das empresas mais poderosas. Além da Sonangol, houve também a exoneração da administração da Diamang e há também o golpe na TPA, a afetar a Semba Comunicações, de Tchizé dos Santos e Córeon Dú. Este último caso pode não ser muito importante a nível económico, mas simbolicamente é muito forte, não acha?
Sim, é muito forte. E a exoneração na semana passada dos presidentes dos conselhos de administração do Jornal de Angola e da TPA é muito, mas muito importante. A imprensa pública agora passa notícias que há três meses nunca passava, notícias negativas em que nem tudo está bem. A mensagem passou. E há pessoas que, mesmo estando dentro de instituições que até agora eram muito partidarizadas, como o Jornal de Angola, têm uma ética profissional que lhes permite tomar esse espaço. Usam o pouco espaço que existe, embora ele ainda não seja formal, para trabalhar em direção de uma certa abertura.

É uma Perestroika à angolana, então?
Ainda é muito cedo para falar disso. O que as pessoas têm dito neste dias é que é “ver para crer”. O angolano quer ver para crer. Há otimismo e pelo menos os sinais que estão a ser dados agora dão para entender que o otimismo pode ser justificado. É uma surpresa, mas uma surpresa muito bem-vinda.

Voltou há poucos dias de uma visita de quatro semanas a Angola. Falhou a exoneração de Isabel dos Santos por pouco tempo. Mas mesmo assim chegou a apanhar a exoneração do conselho de administração da Diamang, do governador do Banco Nacional de Angola, da direção da Ferrangol… E também estava em Angola quando saiu a notícia falsa — que agora se confirmou — da exoneração de Isabel dos Santos. Como é que as pessoas à sua volta viveram tudo isto?
A reação é quase eufórica. Realmente, as pessoas já andavam fartas deste sistema há muito tempo mas não havia como exprimir isso e dizer as coisas. Agora, o simples facto de haver uma nova pessoa lá, em termos simbólicos, abre espaços onde de repente há coisas que há alguns meses eram impensáveis e hoje são possíveis.

E os cidadãos ligam esta vaga a uma possível melhoria da sua qualidade de vida ou, para já, impera apenas a surpresa pela limpeza que João Lourenço está a fazer?
A grande expectativa é mais qualidade de vida. Mas as pessoas das camadas mais populares têm consciência de que isso não vai acontecer de um dia para o outro. O país vai ainda continuar em crise mais um ano ou dois, porque os erros económicos do passado não podem ser corrigidos simplesmente com a exoneração de algumas figuras. Há muito dinheiro que simplesmente desapareceu e a diversificação da economia, embora se fale dela há dez anos, não aconteceu. E isso vai demorar mais tempo do que apenas a exoneração de algumas figuras.

Qual é a conclusão que retira no livro que acaba de publicar?
O livro é uma análise da relação que existe entre o povo e o poder e detalha os vários pontos que constroem essa relação. São laços históricos, são memórias populares de alguns acontecimentos, memórias de violência, mas também são elementos muito mais transacionais do que uma análise comum de um sistema autoritário nos dá a entender. Apesar de tudo, existe uma forma de negociação social que leva a uma legitimização política do sistema, embora ele seja muito desigual. O livro tenta compreender como é que o sistema funciona para as pessoas que não fazem parte da elite e que têm de viver com um sistema destes no dia a dia. Quando terminei o livro, já se sabia que João Lourenço era o nomeado do partido, mas as eleições ainda não tinham acontecido. E eu escrevi que vai ser preciso mais do que a mudança de um só homem para mudar as práticas políticas e económicas em Angola e que seriam necessárias reformas mais fundamentais. Mas talvez essa conclusão esteja agora um pouco ultrapassada. Porque se há realmente vontade de fazer essas reformas fundamentais por parte do novo Presidente, então talvez essas mudanças possam ser mais abrangentes do que se pensava.

Os desenvolvimentos mais recentes podem levar a uma relação mais próxima entre a ideia de povo e a ideia de elite, é isso?
Sim, do povo com o poder. Talvez o poder se torne um pouco mais reativo às necessidades da população.

E assim desaparece uma certa ideia de elite? Essa ideia vai ser reformulada em Angola ou simplesmente vão ser substituídos por outros e fica tudo na mesma?
Essa é a grande questão. A ideia das grandes famílias e a hierarquia do poder, a cultura do “sim, chefe”, não sei se tudo isso vai mudar de um dia para o outro com a retirada do clã Dos Santos. Mas essa é a questão interessante a observar nos próximos anos.

Para já, Isabel dos Santos e Córeon Dú permanecem em silêncio. Só Tchizé dos Santos falou, no WhatsApp, e disse que sonhava um dia ser condecorada por um Presidente da República pelo seu trabalho à frente da TPA. Chegou até a falar de Paul McCartney e Paula Rego, que foram condecorados. Há muita gente a rir desta ideia, mas ela parece falar mesmo a sério. A elite Dos Santos sentia-se assim tão intocável?
A noção da realidade parece que é outra. E isso já se notava há algum tempo. Como é que numa situação de crise esses filhos podiam continuar a comprar os relógios e a exporem-se no Instagram em grandes festas? Isso em termos de relações públicas foi uma grande estupidez. Então, uma reação dessas vinda da Tchizé não é tão surpreendente quanto isso. Mas pelas coisas que estão a circular no WhatsApp, nos meios ligados ao partido, percebe-se que é simplesmente ela que está a falar à toa e que isso não vai mudar as coisas.

* Uma excelente entrevista de JOÃO DE ALMEIDA DIAS.

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