Cultura servida à mesa
KUALA LUMPUR, MALÁSIA - A comida está omnipresente em todas as ocasiões e é assunto de sério orgulho
“Comer é o desporto nacional!” ouço o embaixador sussurrar com
antecipado deleite ao ministro do seu país, em visita oficial à Malásia.
São dez da manhã e está a terminar a primeira de muitas reuniões que se
vão suceder nesse dia. Acompanha o Ministro uma comitiva de cerca de
dez senadores e empresários, o embaixador e eu, como intérprete. Assim
que as últimas palavras de despedida são emitidas e antes ainda que
alguém tenha tempo de se levantar das cadeiras, é rapidamente colocado à
frente dos digníssimos participantes, agora tornados honráveis
comensais, uma refeição de frango frito e noodles. Com o pequeno almoço
buffet do Hotel ainda em início de digestão, o ministro esboça um
sorriso e prepara-se para atenciosamente descartar o convite à
alimentação. “Nem pensar em não comer”, acrescenta o embaixador,
acostumado a este protocolo e a deliciar-se com a situação, “seria uma
tremenda desfeita”. E assim, perante os olhos atentos dos empresários e
funcionários governamentais que os receberam, a comitiva do país
resignou-se a petiscar sem grande entusiasmo e algum embaraço um segundo
pequeno almoço. A seguir, viria uma nova reunião, com mais momentos
gastronómicos. E assim por diante durante dois dias. Na Malásia, a
comida está omnipresente em todas as ocasiões e é assunto de sério
orgulho.
Não sei se é apenas a minha faceta beirã a dar de si,
mas esta história da devoção à comida não me é estranha. Obviamente, se
um prato nos é posto à frente, é necessário comer, e comer muito, e
repetir – caso contrário é uma desfeita, e uma desfeita séria, uma crise
diplomática de pequenas proporções. Não se sai de casa de ninguém sem
levar todos os cantos e recantos do estômago cheio. E não se trata de
uma devoção silenciosa. Comecei a reparar, graças ao estrangeiro que fui
buscar à Austrália para invadir a nossa família, que não só a comida é
um elemento fundamental dos nossos encontros, na forma como é
apresentada e muitas vezes atenciosamente impingida, mas também na forma
como permeia as nossas conversas. É como se houvesse uma agenda
pré-estabelecida em cada encontro: inicia-se a reunião com louvores à
comida apresentada, o que nos leva ao ponto seguinte, que é a lembrança
de um outro manjar – partilhado até à exaustão e muito provavelmente não
pela primeira vez; segue-se uma breve interrupção do tema para comentar
assuntos do dia a dia, e no ponto três da agenda retomamos o fio à
meada, quando o/a cozinheiro/a pergunta se estão todos satisfeitos, o
que dá inicio a novos louvores (quando assim é) e inicio do seguinte
ponto: mais uma incursão na memória gastronómica de um dos participantes
que pode ou não conduzir a uma outra; nova interrupção para falar da
vizinha, ou da prima, ou da tia, ou, se alguém arrisca, tocar nos temas
da política, religião ou futebol com a segurança de que, ferindo-se
alguma susceptibilidade, podemos regressar ao porto seguro das
divagações gastronómicas.
Graças a este paralelo, a esta
devoção comum, encontrei na comida, até ao momento, uma porta de entrada
na alma deste país, que me está vedada de tantas outras formas – pela
linguagem que não falo, a cultura que não conheço, a religião que não
partilho, os lugares que a minha pele branca não frequenta. Nas casas em
que cresci, quem não gosta de um bom garfo e um bom copo é encarado com
a silenciosa estranheza de um bicho absurdo e desconhecido, cujas
intenções se desconhecem; um bom comensal, por outro lado, é um
compincha e quanto mais come e mais bebe, mais parte da família é. Da
mesma forma, apreciar a comida, em Kuala Lumpur, permite-me despir-me um
pouco da minha roupagem física e cultural de estrangeira.
Sempre que faço viagens de Uber – infelizmente cada vez menos desde que
temos carro – pergunto sempre ao condutor onde me aconselha a comer. Os
malaios de etnia chinesa, particularmente, adoram a pergunta e adoram
recomendar sítios. Durante várias semanas depois de nós termos chegado, o
Roger manteve contacto com um desses condutores, que lhe enviava
fotografias e direções de locais sempre que acabava de comer uma boa
refeição. Era uma espécie de guia personalizado cujas recomendações
seguimos várias vezes.
Há imensos restaurantes em Kuala Lumpur,
e os preços são muito acessíveis na generalidade. Nas zonas mais
povoadas por expatriados, os restaurantes têm muito bom aspecto, a
decoração é cuidada e apetece entrar em quase todos. Lado a lado com
eles, sobrevivem as barracas de comida de rua, sempre cheias. As
recomendações, quando as recebo de locais, nunca recaem nesses
restaurantes, onde a refeição custará alguns 30€ para duas pessoas. São
as barracas de comida de rua que nos recomendam, onde uma refeição não
chega aos 10€ para duas pessoas, ou restaurantes de decoração simples,
que passam desapercebidos com a sua roupagem pobre, mas que, se olharmos
com atenção, estão sempre repletos de gente. Já ficámos insatisfeitos
em alguns restaurantes de roupagem rica, mas nunca ainda nos
restaurantes de rua. Curiosamente, raras vezes encontramos outros
expatriados nestes locais. O receios das intoxicações alimentares e da
falta de higiene não é ultrapassado pela óbvia constatação de que os
restaurantes não costumam encher-se de pessoas que adoram passar o dia a
vomitar e que, como tal, um grandioso restaurante vazio constitui um
risco maior à nossa flora intestinal do que um estabelecimentozeco de
esquina persistentemente cheio de gente.
A melhor experiência
que tivemos até agora foi graças à esposa de um colega do Roger, natural
da Malásia e de etnia chinesa. Levou-nos a um desses restaurantes de
rua, de cadeiras e mesas de plástico, onde se ouve o barulho dos
geradores e não existe uma única feição ocidental. Foi ela que, em
mandarim, negociou o pedido. Digo negociou porque parte dos pratos que
vieram nem sequer figuravam no menu. Ninguém percebeu o que foi pedido,
para lástima minha, porque percebi depois que não poderia reproduzir
aquela refeição sem a ajuda dela. O manjar foi indescritível, uma
absoluta surpresa de sabores que não cabe no meu vocabulário. Depois
dele, acabaram-se os restaurantes chineses em Portugal - tive finalmente
a confirmação de que são uma impostura equivalente à comida portuguesa
servida aos ingleses nas ruas de Albufeira.
Um dia hei-de dizer
algumas palavras em malaio e talvez em mandarim. Hei-de ter tempo de
ler mais sobre a história e a cultura deste país. Hei-de conhecer mais
sítios e encontrar uma forma de furar a bolha onde vivo e penetrar mais
na dinâmica local. Até lá, tenho os restaurantes de rua, onde a
miscelânea cultural que a Malásia é se transforma numa magnífica mistura
de cheiros e sabores.
* Rita mudou-se em Julho para a Malásia, deixando para trás a Austrália onde viveu dois anos. Já montou casa em várias partes do mundo. É fisioterapeuta, mas trabalhou durante vários anos no ramo dos Direitos Humanos e ajuda humanitária. Tem dois filhos pequenos, de 2 e 4 anos.
IN "VISÃO"
02/10/16
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