06/02/2016

MANUEL SÉRGIO

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Ética no Desporto
O especialista e o leigo, 
em futebol 
 
Muitas vezes se diz, na tentativa de caracterizar o futebol: “O futebol não é uma ciência certa”. E assim é: o futebol não é uma ciência certa. Mas por esta razão muito simples: não há ciências certas, acabadas, definitivas. “Por volta de 1880, a comunidade científica pensava sinceramente que o mundo não tinha mistérios.

Em 1887, o director do gabinete de patentes de Nova Iorque demite-se, pois já não havia mais nada para inventar. A ciência estava acabada, a história das ciências chegara ao fim. Neste mesmo ano de 1887, o muito laico ministro da Instrução Pública, o químico Marcellin Berthelot, afirma: “Para a ciência, o mundo já não tem mistérios” (Bruno Jarrosson, Humanismo e Técnica, Instituto Piaget, Lisboa, 1998, p. 57). Ora, desde então, até hoje, o progresso não cessa, porque nunca se conclui definitivamente um problema. Resolvido um, novos problemas aparecem. É sempre assim. De faces reluzentes, já alguns proclamaram: “No futebol, está tudo inventado”. Enganaram-se. Porque tudo é tempo, nada terá fim. Como simples espectador, primeiro; depois, como dirigente do Belenenses e estudioso (mormente desde 1968, o meu primeiro ano de bibliotecário no INEF) – posso testemunhar a diferença entre o futebol, de há 70 e 60 e 50 anos atrás e o futebol dos nossos dias. Menos velocidade, menor apuro técnico, instalações rudimentares, mas um “amor à camisola” que hoje não existe já. Do profissionalismo e do desenvolvimento ao nível do treino, do progresso científico, das próprias transformações sociais e económicas – nasceu um futebol novo, um futebol onde é possível distinguir-se, sem margem para dúvidas, os especialistas dos leigos, os simples adeptos dos “trabalhadores do conhecimento”. No entanto, há que dar a devida atenção ao facto de a diversidade epistémica do mundo ser potencialmente infinita, “pois todos os conhecimentos são contextuais. Não há, nem conhecimentos puros, nem conhecimentos completos: há constelações de conhecimentos” (Boaventura de Sousa Santos, org., Semear Outras Soluções, Edições Afrontamento, Porto, 2004, p. 46).

Em Junho de 1974 (o primeiro livro editado pela Direcção-Geral da Educação Física e Desportos, depois da Revolução dos Cravos) publiquei o meu livro Para uma Nova Dimensão do Desporto. Nele, dei a conhecer o Desporto em que acredito: “Também concorre ao aperfeiçoamento das características psicológicas de todas as idades e de cada um dos sexos. Nada esquece no movimento humano, sob o ponto de vista articular, muscular, funcional. Pretende dar ao praticante força, velocidade, endurance, resistência, coordenação. Não se limita a fazer bestas esplêndidas, ou mesmo animais racionais com impecável coordenação neuromotora. É maia ambicioso: quer ser um factor de enriquecimento das estruturas sociais, porque reivindica tempo de lazer e nóvel de vida aceitável, porque quer fazer parte da vida quotidiana de todos (todos!) os homens, porque se afasta do panem et circenses das turbas massificadas e quer ser um meio de o homem se exercitar no uso da liberdade. Este é o Desporto em que eu acredito. Conserva intacta a função biológica do desporto percepcionada à maneira antiga. Mas acredita firmemente que tem uma função social e política, por outras palavras: que se situa na esfera da responsabilidade social. Pensando bem talvez possa mesmo adjetivá-lo de político. Isso mesmo! Achei! Um desporto político! Porque recusa a esfera do primado do íntimo, do subjetivo e aceita o predomínio do encontro, do intersubjetivo”. O “grande paradigma do Ocidente”, formulado por Descartes e pelos cartesianos, assentava sobre os princípios de redução, exclusão e disjunção: entre o sujeito e o objeto, entre o objeto e o ambiente, entre o espírito e o corpo, entre os sentimentos e a razão, entre o homem e o animal, entre a natureza e a cultura. O que levou à separação entre a ciência e a filosofia, entre as ciências e as humanidades, entre a ciência e a consciência, entre os factos e os valores, entre a esfera privada e a esfera pública.
 
Ora, para Edgar Morin e os demais defensores do paradigma complexo, física, biologia, antropologia, sociologia, filosofia, economia, política tudo se encontra ligado por um mesmo método, o da complexidade. “Morin compreendeu-o perfeitamente: a verdadeira revolução desenrola-se no terreno do princípio e do modo organizador das ideias. A verdadeira revolução metodológica (do método) só se pode transformar em revolução paradigmática” (Robin Fortin, Pensar com Edgar Morin, Instituto Piaget, Lisboa, 2006, p. 169). E um paradigma que, ao contrário do paradigma cartesiano, seja complexo e, por isso, inovador. E quais as principais características do paradigma complexo? É incompleto, inacabado, ou seja, no conhecimento científico, nada pode considerar-se completamente resolvido, nada deverá considerar-se como “um sistema acabado e fechado” (dizer-se que no futebol está tudo inventado não passa de um disparate); o todo não é igual à soma das partes: se dividirmos uma empresa em duas, de um lado a parte técnica, do outro a parte comercial, não conseguimos duas empresas viáveis, pois que o todo, neste caso, é mais do que a soma das partes; todas as decisões podem ter consequências imprevisíveis, pois que na instabilidade típica da complexidade, ordem e desordem encontram-se intimamente ligadas; uma ordem imprevista pode emergir da desordem, dado que é permanente a conjunção entre a ordem e a desordem. Um exemplo: a democracia, nascida da Revolução dos Cravos, despontou de uma ditadura, com a duração de quase 50 anos! Toda a ordem nova nasce de uma desordem! Ao nível do conhecimento, as revoluções científicas, as mudanças de paradigma, os cortes epistemológicos – provêm de momentos convulsos, caprichosos, inquietos da história de uma ou várias ciências.

Edgar Morin, n`Os Sete Saberes para a Educação do Futuro, diz-nos que “o ser humano é, simultaneamente, físico, biológico, psíquico, cultural, social, histórico. É esta unidade complexa da natureza humana, que está completamente desintegrada no ensino, através das várias disciplinas e tornou-se assim impossível aprender o que significa ser humano (…). A condição humana deveria ser o objeto primeiro de todo o ensino”. Eu permito-me adiantar: a condição humana deveria ser o objeto primeiro de uma cuidada preparação científica de uma equipa de qualquer uma das modalidades desportivas e portanto o paradigma organizador do trabalho, no âmbito do desporto, deverá situar-se entre as ciências hermenêutico-humanas. Assim, os problemas desportivos não são, sobre o mais, de ordem tática, mas humana. Por isso, a liderança, a coragem, o espírito de grupo, a generosidade, um querer à altura do dever, a fé são problemas desportivos. A fé? Sim, a fé em ideais, em valores, que fazem de um número uma comunidade, um grupo sólido e coeso. A propósito deste tema, Jesus Cristo, Sócrates, S. Francisco de Assis, Gandhi, Luter King, Buda, Nelson Mandela, o Papa Francisco podem citar-se como exemplos de um funcionamento eficaz da prática desportiva. No desportista, liberdade e dever andam juntos, porque só quem é livre pode assumir o dever de ser livre. O campeão, no desporto, é um aristocrata moral – que o não esqueça os que muito sabem de desporto e ainda os Messis e os Ronaldos. No desporto, tão importante como a aprendizagem de métodos é a aprendizagem de conteúdos. Os métodos, sem conteúdos, para pouco servem. É o conteúdo que torna, ou não, apetecível o método. E, no conteúdo, não há só tecnociência, há também filosofia e pedagogia e poesia e amor. Sabem estas coisas os especialistas em Desporto?  

Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto

IN "A BOLA"
01/02/16


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