Eu lembro-me
Preferiam fezes? Então tomem esta solução de compromisso: quando era pequena tinha muita prisão de ventre e por isso sujeitaram-me às mais variadas mezinhas, como um raminho de salsa enfiado no rabo. Porque é que eu escrevi isto?
Ia escrever sobre o filme “Centopeia Humana 3” (oh não, uma crónica
sobre escrever uma crónica!). Para quem não está familiarizado, trata-se
do terceiro e último tomo de uma trilogia de terror de série B, escrita
e realizada por Tom Six, um holandês que ficou retido na fase anal de
Freud.
Mais que apreciar genuinamente estes filmes – cujo fio condutor é o
intestino, mais concretamente a ideia de unir um número cada vez maior
de seres humanos através de um só sistema digestivo... e deixo o resto à
vossa imaginação –, diverte-me muito vê-los e sobretudo contá-los a
pessoas impressionáveis. Sou uma espécie de resumo Europa-América
ambulante para quem não se sujeita a certas perdas de tempo extremas,
mas ainda assim está disposto (por vezes relutantemente) a receber
informação em segunda mão acerca desse fascinante mundo de cérebros
moles e estômagos rijos em que por vezes descanso.
Ia escrever sobre esse filme – em que um prisioneiro viola o rim do
director da prisão, que por sua vez come clítoris liofilizados de uma
tribo africana como se fossem rebuçados –, mas depois mostraram-me um
livro tão interessante que vou ter de voltar a falar de memórias.
Preferiam fezes? Então tomem esta solução de compromisso: quando era
pequena tinha muita prisão de ventre e por isso sujeitaram-me às mais
variadas mezinhas, como um raminho de salsa enfiado no rabo. Porque é
que eu escrevi isto? Porque me lembro.
“I Remember”, originalmente publicado em 1975, é um livro do artista e
escritor americano Joe Brainard que consiste em nada mais nada menos
que um rol de memórias, quase todas muito vívidas de tão sensoriais. Foi
um livro que inspirou muita gente a fazer o mesmo exercício e que tem o
estranho efeito de ser tão íntimo quanto universal, lembrando-me um
diário da minha adolescência a que dei o pretensioso título de
“Autobiografia Ergonómica”.
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As
memórias tornam-nos confortavelmente irmãos, não tanto nas
especificidades do conteúdo (Brainard cresceu como homossexual assumido
na América dos anos 50), mas na forma como as processamos, como as
ordenamos na definição da nossa identidade segundo critérios – o impacto
de uma palavra, de um cheiro, de um toque – que só a nós parecem dizer
respeito mas são mais ou menos os mesmos que nos regem a todos.
Este livro provocou-me alguma ansiedade. Ao mesmo tempo que é quase
imediato o impulso para fazer um exercício semelhante, a torrente de
memórias que desperta no leitor é avassaladora. Mas deixar-me-ia muito
descansada investir nesta espécie de conta-poupança memória. Não gostava
nada de me esquecer que vi a trilogia da Centopeia Humana ou que tive
um raminho de salsa enfiado no rabo.
Guionista, apresentadora e porteira do futuro
IN "i"
05/06/15
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