04/01/2011

ALBERTO GONÇALVES

ALBERTO GONÇALVES

Um ano muito português

Janeiro
Depois de ter despertado para o século XXI em 2007, com a legalização do aborto, Portugal voltou a despertar para o século XXI através da aprovação do casamento homossexual. Entre um marco e o outro, ao contrário do que se poderia esperar, Portugal não dormiu: o berreiro dos apoiantes e adversários de ambas as "causas" não deixou. Valeu a pena o berreiro? Duvido. Os "conservadores" perderam ambos os combates. Os "progressistas" ganharam os combates e a melancolia que se lhes seguiu. Entretanto, sem que a maioria dos cidadãos e a norma social reparasse, algumas (muitas) mulheres abortaram em hospitais públicos e alguns (poucos) gays casaram. E depois? Depois é o vazio, que o debate da adopção por casais do mesmo sexo e, talvez um dia, a questão da eutanásia não conseguirão impedir. A verdade é que as "causas" começam a escassear, e as poucas que restam vêem-se abafadas por problemas comezinhos como a penúria para a qual, tarde como em todos os séculos, Portugal às vezes desperta.

Fevereiro
O país conheceu Rui Pedro Soares, modelo de ascensão social que em poucos anos trepou de estampador de T-shirts do "Che" para a Juventude Socialista até à administração da PT. A súbita, e justíssima, fama do rapaz deveu-se às "escutas" que revelaram o seu papel de intermediário no negócio (interrompido) da compra da TVI, mais uma das inúmeras proezas cuja paternidade a modéstia do eng. Sócrates o impede de assumir. Desde então, o rapaz foi a uma Comissão de Ética na AR enxovalhar os deputados que se prestaram àquilo e, de castigo, acumulou uma quantidade indeterminada de indemnizações, novos cargos na PT, uma auditoria interna nunca divulgada, privilégios e euros. E um jornal, que promete lançar em 2011 a meias com Emídio Rangel, outro exemplo de como o esforço, o talento e a integridade compensam.  

Março 
Após o eleitorado punir Manuela Ferreira Leite por esta passar dois anos a dizer a verdade sobre o buraco a que chegamos, o PSD imitou o eleitorado e, numa daquelas regenerações internas que mobilizam sazonalmente o partido e enriquecem o anedotário nacional, trocou a senhora por Pedro Passos Coelho. Mal alcançou a liderança, o dr. Passos Coelho afirmou não ter pressa de que o Governo caísse. Foi a única afirmação consequente de todas que desde então produziu.
 
Abril
Ignoro quem se culpava quando um vulcão irrompia há dois milhões de anos, mais dia, menos dia. Hoje, o culpado encontra-se num instante. Segundo Mário Soares, os soluços do islandês Eyjafjallajökull, que por atrapalhar os transportes aéreos durante uns dias foi o herói da esquerda do mês, deveram-se à "mão inconsciente e desastrada do homem, que agride e maltrata o planeta". Outros milenaristas não foram tão longe e limitaram-se a ver no Eyjafjallajökull (cortei e colei, o que é que queriam?) um prenúncio do fim do petróleo, do capitalismo, do modo de vida ocidental ou da nossa paciência, de acordo com o que ocorresse primeiro. Não é preciso lembrar o que ocorreu. 

Maio 
Do dr. Passos Coelho ao dr. Louçã, passando pelo eng. Sócrates, pelo ministro das Finanças e pelo sempre interessante dr. Vital Moreira, noventa e nove em cada cem políticos indígenas descobriram que a soberania nacional estava a ser atacada por misteriosos especuladores estrangeiros. Em sintonia, todos reagiram como se impunha: através de insultos aos "mercados" e juras de fidelidade ao "investimento" público. Não fora a maçadora realidade, a qual mostrava que os especuladores e os "mercados" apenas se cansaram de financiar o exacto "investimento" público que nos arrastou para a indigência, a estratégia teria sido infalível.
 
Junho
Em Junho morreram José Saramago, nas Canárias, e a selecção do "professor" Carlos Queiroz, uns milhares de quilómetros a sul. Não tenho particular interesse pelo primeiro nem pela segunda, mas o "professor" propriamente dito fascinou-me por umas semanas. Primeiro, pelo violento contraste entre o optimismo do seu discurso e o fracasso do seu desempenho. Depois, pelo contraste surrealista entre o fracasso do desempenho e a paixão dos seus simpatizantes nos media. Afinal, não é só na política que as catástrofes ambulantes - ocorre-me uma em particular - beneficiam de um apoio muito para lá do compreensível. A diferença é que no futebol a catástrofe é varrida mais depressa.

Julho
Sem consequências visíveis, excepto pela histeria da esquerda, o PSD sugeriu alterar a Constituição. A extemporaneidade da proposta foi proporcional à do próprio texto constitucional, que em diversas nações civilizadas não existe ou, quando existe, resume-se com frequência a um punhado de observações vagas e consensuais. Apesar das revisões anteriores, a interminável Constituição Portuguesa ainda é um manifesto de facção, um relicário das conquistas de "Abril", na acepção que entende "Abril" enquanto um estado de sítio que opõe parte do país à parte restante. Por um lado, uma Constituição que aponta o "caminho a uma sociedade socialista" nunca pôde ser levada demasiado a sério. Por outro lado, vem sendo levada a sério o suficiente para servir de memória descritiva daquilo que hoje somos. Se alguém quiser perceber como o progresso das últimas décadas nunca deixou de arrastar a iminência estrutural da pobreza e do fracasso, encontrará algumas luzes nessa tensão entre a irrelevância e a influência do Livrinho Sagrado a que temos direito.

Agosto
A sanha descentralizadora do eng. Sócrates prosseguiu com o fecho de mais 701 escolas da província, as quais se somam às 3200 já fechadas durante o respectivo reinado. Não consigo discordar da medida. A partir do momento em que se decidiu abolir a educação do sistema educativo, é absurdo continuar a ocupar milhares de edifícios com inutilidades. Se a escola, no sentido lato, é hoje apenas um meio de armazenar crianças enquanto os progenitores labutam no emprego ou na papelada do rendimento mínimo, nada justifica que não se utilizem armazéns de facto, deixando as escolas, no sentido estrito, disponíveis para reconversão a actividades realmente úteis: restaurantes, adegas regionais, etc. Muitos acham que o turismo é o futuro de Portugal, mesmo porque não vêem outro.

Setembro
Pela leitura da sentença do processo Casa Pia desfilaram réus indignados, vítimas traumatizadas, populares excitados, advogados, juristas, psicólogos, criminologistas, comentadores genéricos, repórteres, jornalistas, malabaristas e, possivelmente, o ocasional médium. As opiniões e o ardor envolvidos foram tais que levavam a crer que o desfecho de uma história velha e sórdida redimiria todas as misérias colectivas. Escusado dizer, não redimiu.

Outubro
Hugo Chávez visitou Portugal e o querido amigo José Sócrates. Aliás, o ogre de Caracas parece estar quase sempre de visita. E quando não é o ogre de Caracas é o ogre de Trípoli. E quando os ogres não visitam o eng. Sócrates é o eng. Sócrates que, como a montanha da lenda e com um sorriso cheio de dentes, visita os ogres nos respectivos covis. O discurso oficial jura que semelhantes relações fomentam o negócio de computadores de brincar e pechisbeques afins. A influência do negócio na nossa economia mede-se pelo estado da mesma. É frequente ver estados melhorarem as contas à medida que descem os padrões morais: o eng. Sócrates conseguiu a proeza de descer ambos em simultâneo. Pobres mas desonrados podia ser um lema do actual PS, e é uma súmula do actual país.

Novembro
Contra a bancarrota, nada melhor do que uma greve geral a exigir a perpetuação do tipo de medidas "sociais" que nos atiraram sem desvios para a bancarrota. Pelo menos é este o entendimento dos sindicatos, que se opõem frontalmente às políticas "de direita", ao "neoliberalismo", ao "capitalismo selvagem" e, já que falamos de entidades imaginárias, aos duendes, aos lobisomens e ao Pato Donald. Carvalho da Silva garante: o Pato Donald não passará.

Dezembro
Também por cá quase toda a gente festejou a fuga de informações diplomáticas dos EUA providenciada pelo site WikiLeaks. Poucos notaram que os segredos revelados até dão uma imagem simpática da política externa americana, que a maioria dos segredos revelados corresponde à América de Obama que fingem apreciar e não à América abstracta que odeiam de facto e que, dado o princípio inaugurado, os segredos revelados um dia serão os seus.

A Figura do Ano
É redundante recordar o imenso contributo do eng. Sócrates para a desesperada situação nacional. Mais do que notar que a crise se deve a ele convém notar que a crise é ele. Sem ele, nada será fácil; com ele, tudo será impossível. A capacidade de sobrevivência do eng. Sócrates e a capacidade de sobrevivência do País tornaram-se condições mutuamente exclusivas. Para quem nos prometeu tanto, não está mal.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
26/12/10

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