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Viver sem cabelo
Comecei a perder o cabelo com 19 anos de idade. Já não esperava ser normal em nada, mas, ainda assim, os meus pais levaram-me a um dermatologista que me mandou esfregar ampolas na cabeça que cheiravam a rabo de crocodilo. Ao fim de um ano, fartinho, sem ver melhoria absolutamente nenhuma, desamuei e acabou-se o assunto. Fiquei careca com a mesma naturalidade com que alguém vive com peito cabeludo ou um dedo meio abreviado, como a minha comadre Susana.
Agora, as pessoas mandam-me aos médicos dos implantes e eu conheço alguns amigos que já foram e vejo-os na mesma figura. Seguem carecas com uns fios arrepiados que não me convencem de saúde nenhuma. Além de parecer que têm a cabeça aos furos, toda a querer pingar sangue e vermelha de uma raiva na pele, aquilo não tem futuro. Não progride. É mato que não alastra. Fica igual a alfinetes num rabo de papel.
Há uns anos, entrei numa loja gigante que vendia cabelos para homens. Entre latas de tinta, toalhas e relógios, havia uma mesa com cabelos para homens feitos na China e prontos a usar. Estava com amigos e divertimo-nos a ver como ficava. Fiquei, invariavelmente, lindo. Nunca imaginei que o cabelo me emoldurasse o rosto de modo a fazer-me quase outra pessoa. Sobretudo, fazia de mim um homem bastante mais jovem. Enquanto nos ríamos, todos diziam que, afinal, era simplesmente uma desgraça a minha calvície. Como estou habituado a ser assim, e como sou um solteiro cheio de oportunidades, não quero dar importância ao desnecessário. Esta semana, contudo, ligaram-me a dizer que me fizeram um estudo em computador para um penteado incrível que alterará a minha imagem e a minha felicidade. Era assim que diziam. Eu só teria de pagar o tratamento para atingir aquele resultado mais do que previsto, prometido. Eu nem devia ponderar. Era mais maduro esquecer. Mas passei uma noite de cão, revirado na cama a sonhar como ficaria lindo, um verdadeiro Paul Newman de charme a rebentar que deixaria os olhos vizinhos a chorar de paixão.
Curioso como sempre nos atrai a fantasia de sermos de outra maneira. De
sermos outros. Por mais apaziguados e até felizes com aquilo que fizemos
da nossa vida, a hipótese de frequentar o mundo numa outra realidade,
uma que nos ofereça algum tipo de vantagem, parece ofuscar nossa
estabilidade e convidar à vertigem de regressarmos aos grandes riscos,
às grandes apostas, como quem tem ainda o futuro todo em aberto para ser
inventado.
IN "NOTÍCIAS MAGAZINE"-14/08/24.
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