12/06/2023

JOSÉ SOEIRO

 .

SANTA CASA DA CENSURA, INACREDITÁVEL

OS 'FAXOS' CONTINUAM



Santa Casa
do Silêncio sobre os
Traficantes de Escravos

Em vez de aproveitar a interpelação e aprofundar o debate sobre o tráfico de pessoas escravizadas e as continuidades da colonialidade, a Santa Casa mandou fechar a sala onde estava a intervenção artística e mutilou a obra, removendo as partes de que não gostava.

Conde de Ferreira, notável portuense do século XIX, tem o seu nome inscrito em ruas e instituições da cidade. Era dono de uma enorme fortuna e não tinha descendentes. Deixou-a em testamento a várias entidades: ao Estado português (para que fossem construídas 120 escolas primárias), à Santa Casa da Misericórdia, a várias ordens religiosas. De onde vinha tão vasto pecúlio de uma pessoa que nascera numa família humilde de Campanhã? Dos seus negócios no Brasil e, particularmente, do tráfico de pessoas escravizadas. Foram cerca de 10 mil angolanos que Joaquim Ferreira dos Santos vendeu no Brasil a proprietários do açúcar. As avultadas somas de que tantas “obras sociais” beneficiaram no Porto têm assim a marca sinistra do crime contra esses milhares de seres humanos transformados em mercadoria e violentados na sua dignidade e direitos mais elementares.

Foi este o tema que os artistas Dori Nigro e Paulo Pinto decidiram abordar na sua instalação “Adoçar a Alma para o Inferno III”, que discute o passado escravocrata do celebrado comerciante e político. Apresentaram-na na Bienal de Fotografia que acontece, justamente, no Centro Hospitalar Conde Ferreira, propriedade da Santa Casa da Misericórdia. É difícil imaginar um tempo, um modo e um lugar mais pertinentes para esta intervenção artística. Na instituição construída com o dinheiro do tráfico, os artistas perguntavam: “quantas pessoas escravizadas valem um hospital psiquiátrico?”.

O questionamento tem um duplo mérito. Iluminar as contradições que habitamos, lembrando que a riqueza trazida para Portugal não pode ser pensada sem os crimes coloniais e a expropriação feita noutros territórios, designadamente africanos, pois aqueles foram uma condição indispensável da acumulação de fortunas como a do conde de Ferreira. E também lembrar que o tráfico de escravos durou pelo século XIX adentro no espaço colonial português (até 1888 no Brasil), muito depois da “abolição da escravatura” em Portugal, em 1761.

Só que a reação da Misericórdia foi a pior possível. Em vez de aproveitar a interpelação e aprofundar o debate - quer sobre o legado do patrono, quer sobre as continuidades entre processos coloniais, escravatura e trabalhos forçados (que vigoraram até depois de 1960) de ontem e as dinâmicas de colonialidade e racismo de hoje (por exemplo, discutindo a racialização do trabalho dos cuidados no setor social e não só) -, mandou fechar a sala onde estava a obra, numa cena caricata em que um funcionário foi posto a selar a porta com uma tábua e parafusos. Depois deste monumento físico à censura, a Misericórdia mutilou a obra dos dois artistas, removendo as partes de que não gostava. O argumento para tal gesto foi este: “o potencial desconforto que tal obra poderia gerar na comunidade daquela que é a casa de muitos doentes”. O efeito da prepotência foi, evidentemente, dar mais publicidade ao tema, detonando uma polémica que levou, por exemplo, a Câmara do Porto a repudiar publicamente a censura da Misericórdia.

A cereja no topo do bolo desta cretinice foram as declarações da vereadora do PSD, que saiu em defesa pública da censura e da Santa Casa, cujo provedor foi aliás mandatário do partido e eterno candidato a candidato a cabeça de lista à autarquia. "Foi só um espelho com uma frase [que foi censurado], não foi uma obra de Miguel Ângelo", declarou a vereadora laranja, acrescentando que a obra “colocava em causa o trabalho do próprio hospital” e, finalmente, declarando que a arte não deve servir para fazer críticas pois “no limite, estamos a justificar a arte para dizer coisas que fora dela não são legítimas e agradáveis". Uma lição sobre as funções e os limites da arte que não pede meças a um Dr. António Ferro, conhecido chefe do Secretariado da Propaganda Nacional.

Não se quer acreditar, mas tudo isto aconteceu mesmo. Em 2023. Num tempo em que devíamos estar a tornar acessíveis os arquivos, a promover a investigação do passado, a esclarecer massacres, a renovar leituras e programas de ensino, a financiar mais trabalhos científicos e artísticos sobre estas matérias, há quem pratique censura sobre factos, insista em promover o esquecimento e defenda alegremente estas atitudes.

No passado mês de maio, o historiador Miguel Cardina publicou um livro no qual desenvolve uma reflexão sobre o prolongado “feitiço imperial” no espaço público, sobre os debates em torno dos usos do passado e sobre alguns destes escombros coloniais que, como se vê, fazem ainda o nosso presente. Chama-se, eloquentemente, “O Atrito da Memória”. Devia ser de leitura obrigatória para provedores de Santas Casas e vereadores social-democratas.

* Sociólogo, dirigente do BE

IN "EXPRESSO -08/06/23.

1 comentário:

Tété disse...

Cada vez que se destapa uma investigação encontra-se qualquer coisa menos honesta.
Mas será que pouco se aproveita da vida e sua verdade ao longo da história? 🙄☹