14/10/2022

MIGUEL GUEDES

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Entre o perdão
e o encobrimento

Perante os casos de suspeitas e denúncias de abusos sexuais que se acumulam, todos os meses, pendendo na jugular da Igreja Católica portuguesa como um cutelo, uma parte das suas mais altas figuras permanece muda ou envolvida num manto desculpabilizador absolutamente intolerável.

A prescrição moral não está regulada juridicamente, está sujeita ao julgamento final. Se perante um crime, o julgamento de direito admite a prescrição como um valor que preserva a segurança do funcionamento jurídico, já na moral cristã não há prescrições: um assassino será sempre um assassino; um ladrão, ladrão; um abusador será sempre abusador. Só a confissão, o arrependimento e penitência atenuam, convocando o perdão. Perante os casos de suspeitas e denúncias de abusos sexuais que se acumulam, todos os meses, pendendo na jugular da Igreja Católica portuguesa como um cutelo, uma parte das suas mais altas figuras permanece muda ou envolvida num manto desculpabilizador absolutamente intolerável. Mais perto do arrependimento mas ainda longe da penitência, nem sequer confessa abertamente os seus pecados. Perante tudo o que se passou, soma aos factos uma atitude sem perdão. A Igreja continua a defender-se com a teoria dos factos à época, como se fossem cometidos na Idade Média.

O silêncio sepulcral que a Igreja portuguesa manteve sobre os abusos sexuais cometidos dentro da organização é lancinante. O mais recente caso de Ximenes Belo é um paradigma do oculto, testemunho vivo (e paradeiro incerto) da protecção incompreensível que lhe foi oferecida. Prémio Nobel da Paz em 96, chega a Portugal em 2002 depois de se afastar subitamente de chefe da Igreja católica de Timor-Leste, aos 54 anos, duas décadas antes do que a sua idade de reforma faria supor. Alegando motivos de saúde, ergueu-se uma capa de segredo que só foi parcialmente detonada quando, em 2019, o Vaticano o proíbe de contactar com crianças. Na Cimeira de Roma desse ano, a Igreja havia já invertido o sentido de desculpabilização face ao que parecia aportar como a ponta de um iceberg canónico. Não fosse a fortuna de vivermos no tempo do Papa Francisco e nada teria mudado. Infelizmente, não mudou para todos.

Depois das declarações pífias de D. Manuel Clemente, patriarca de Lisboa que, perante os casos de pedofilia e abusos sexuais, proferiu uma altiva oração pela omissão ao colocar o factor de desculpabilização na vontade e sigilo das vítimas, foi agora D. Manuel Linda, bispo do Porto, a dar continuidade a um conjunto de ideias que, envergonhando agnósticos e ateus, são insuportáveis quando proferidos por crentes. Para ele, como assegurava em 2018, estes tipo de crimes devem continuar a ser "um fenómeno fundamentalmente anglo-saxónico", determinado por um "género de psicologia" de aproximação e integração. Assegurando a natureza não pública dos crimes (erradamente e como se tal fosse determinante para agir ou tomar posição), quando confrontado com a questão sobre se não deveria, pelo menos, ter denunciado os casos às autoridades, responde que "não podemos julgar o passado com critérios de hoje" e que não havia "obrigatoriedade de denúncia". Uma vez mais, a Igreja a olhar para o passado recente sem sair da Idade Média. Medieval, portanto.

* Músico e jurista

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS" - 07/10/22.

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