06/05/2022

CARLOS BRANCO

 .




Operações psicológicas 

e a Ucrânia

A Ucrânia é um Estado onde prevalecem oligarcas poderosos e interferências externas constantes, com um sistema político eleitoral precário, acossado por milícias extremistas armadas de cunho racial-nacionalista.

O desconhecimento é frequentemente a base das grandes certezas. A concordância de ocasião com o facto de a verdade ser a primeira vítima da guerra não nos defende. A moldagem de atitudes e comportamentos das audiências, levada a cabo pelos especialistas em operações psicológicas utilizados pelos litigantes, é mesmo algo real.

Isso aplica-se à guerra e ao modo como as partes envolvidas num conflito se esforçam por captar aderentes. Não há grupo social que lhes escape, independentemente do nível de literacia e da classe social. Não é por acaso que os litigantes contratam empresas de relações públicas para propagarem argumentos, premissas e perspetivas que lhes sejam favoráveis.

Os muçulmanos e croatas bósnios recorreram intensamente a empresas de relações públicas, atores incontornáveis e centrais no planeamento e execução de operações psicológicas. Certamente é o que sucede agora na Ucrânia. Mais de 150 empresas de relações públicas, milhares de especialistas, dezenas de agências noticiosas, meios de comunicação de prestígio, canais Telegram, contas no Twitter, bem como os meios de comunicação social participam na formatação das opiniões públicas.

Quando James Harff, diretor da Ruder Finn, uma empresa de relações públicas norte-americana contratada pelos governos da Croácia (agosto 1991) e da Bósnia-Herzegovina (junho 1992) e, mais tarde, pelos separatistas albaneses da província sérvia do Kosovo (outubro 1992), foi questionado sobre qual o feito de que mais se orgulhava, respondeu: “Colocar a opinião pública judaica do nosso lado [croata e muçulmano]… havia todas as razões para que intelectuais e organizações judaicas fossem hostis aos croatas e muçulmanos.

O nosso desafio era reverter esta atitude. E nós fizemos isso magistralmente. Foi um tremendo golpe…”. Sem dúvida. Organizações judaicas chegaram a organizar uma manifestação em Nova Iorque contra os “nazis sérvios”, por acaso o único grupo étnico da região que, durante a Segunda Guerra Mundial, combateu as forças do Eixo, enquanto croatas e muçulmanos foram muito para além do colaboracionismo, perpetrando massacres e assassinatos dos outros grupos étnicos, com os sérvios à cabeça.

As operações psicológicas produziram efeitos. Nos anos 90 colocaram largos setores da opinião pública europeia, nomeadamente intelectuais de esquerda, ou seja, quem tinha, em princípio, mais razões ideológicas para fazer oposição, ao lado e a defender quem no terreno saudava com o braço direito esticado ou mantinha relações promíscuas com a Al Qaeda. Ingenuamente, as questões geopolíticas associadas e causadoras do conflito foram menosprezadas, com o contributo ativo dos “temas e mensagens” criadas e desenvolvidas por spin doctors.

Esta prática repete-se hoje. No conflito da Ucrânia a manobra psicológica existe, e é intensa e capaz. Os operadores de operações psicológicas têm feito prevalecer “explicações” para o conflito, que apesar de apelativas, pouco ou nada explicam, escamoteiam as suas causas e marginalizam o discurso racional e analítico. Como sejam, por exemplo, apresentar um confronto (de great power politics) que recorre a uma proxy war (na Ucrânia), como uma guerra entre democracias e autocracias, ou como um ato tresloucado de um líder russo que sonha com a reconstituição do antigo império soviético.

Equações em que se tem de estar do lado dos “bons” para não se ser empurrado para o lado dos torpes e torcionários. Uma postura kafkiana que reduz o debate a níveis extremamente perigosos, envolvendo insultos e acusações provocatórias.

Nenhuma daquelas categorias explica seja o que for. A Ucrânia é um Estado onde prevalecem oligarcas poderosos e interferências externas constantes, com um sistema político eleitoral precário, acossado por milícias extremistas armadas de cunho racial-nacionalista, onde prospera a corrupção, a perseguição, o medo, o assassinato político, a ilegalização de partidos, o controlo da comunicação social e a reabilitação histórica de líderes nazis.

Em 2021, o presidente da república ucraniana promulgou a “Lei dos Povos Autóctones”, que divide a população ucraniana em duas categorias, algo muito contrastante com os “valores ocidentais”. Ou seja, em matéria de regime político dir-se-ia que a Ucrânia se assemelha muito à Rússia, mas para pior.

Seguindo o princípio de que o inimigo do meu inimigo é meu amigo, como no passado, em que Washington se aliou às forças mais obscurantistas da América Central e do Sul para derrubar governos democraticamente eleitos que não lhe eram politicamente favoráveis, também na Ucrânia, Washington não teve pudor em se aliar aos seguidores de Stepan Bandera, cujos dirigentes apelam ao bombardeamento nuclear de Moscovo.

Entretanto, na região mais ocidental da Eurásia, a intransigente defesa da “democracia” ucraniana justifica a libertação da dependência do gás russo, em troca pela dependência do gás americano mais caro do que o russo, viabilizando uma indústria, que não fosse esta guerra dificilmente atingiria o break even, de modo a salvar os bancos que a financiaram.

Assim se perderão vantagens competitivas relativamente às economias asiáticas, correndo-se o risco de um mix fatal: armamentismo, hiperinflação, depressão económica e classes médias desesperadas. Para não falar da impossibilidade de aceder a matérias-primas fundamentais para o seu desenvolvimento, de que a Rússia é um importante produtor mundial, e que escasseiam na região mais ocidental da eurásia. Tudo por causa da adesão da Ucrânia à NATO e da sua neutralidade estratégica, algo para o qual Kissinger, entre outros, já tinha avisado há algumas décadas.

Como no conflito da Bósnia, em que a Europa desconsiderou, e de certo modo legitimou, a promiscuidade muçulmana bósnia com o fundamentalismo terrorista muçulmano, também se verifica agora na Ucrânia o branqueamento e a vulgarização de forças neonazis, que florescem não só na Ucrânia, mas por toda a Europa, não escapando Portugal a essa rede. Mais uma vez, largos setores sociais estão a ser levados na torrente informacional ao ponto de alguns legitimarem e validarem a associação e aliança com as forças mais obscurantistas da sociedade ucraniana.

Alguma imprensa nacional já se atreveu a apresentar os militantes Azov como heróis libertários. A mesma lógica justificou a libertação de um neonazi português das suas responsabilidades judiciais, para ir em “ação humanitária” combater na Ucrânia. Isto ocorre em Portugal, 48 anos depois do 25 de Abril. Está a acontecer, e à vista de todos. Não poderão ser evocadas desculpas se vier a ser tarde demais.

* Major general e investigador

IN "O JORNAL ECONÓMICO" - 05/05/22.

Sem comentários: