10/11/2020

RUI PATRÍCIO

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The flying circus 

(manual pandémico para feirantes) 

Senhor feirante, mexa-se, chegue-se aos quiosques à hora de saída da rapaziada e vai ver que sempre vende qualquer coisa. 

Diz-se por aí que os feirantes quereriam manifestar-se contra a possível proibição das feiras e mercados (como medida para conter a pandemia). Não compreendo, sinceramente, esta coisa de querer ganhar a vida. É quase não patriótico, que embirração, agora pôr-se uma pessoa a protestar porque fica sem meios de sustento. E até me espanta, vindo de quem vem, porque há muito boa gente que diz que os feirantes não fazem nenhum e vivem do rendimento de inserção. Afinal, parece que querem trabalhar. Mas não podem, não podem não senhor, porque – aliás, eu já desconfiava, e a dona Elvira também, a do rés-do-chão esquerdo – as feiras e os mercados (os de levante) são fortemente responsáveis pela propagação do vírus. Vai daí, talvez proibição. Mas não desesperem, com imaginação e agilidade – essa ferramenta que os caça-talentos preferem à flexibilidade, porque antecipa e vê longe – arranja-se uma solução. Aqui deixo algumas ideias, pro bono.

O feirante passa palavra aos seus clientes e senta-se com eles em grupos de cinco à mesa do restaurante, comem e bebem qualquer coisinha e aproveitam para fazer o seu comércio, são logo dois coelhos mortos de uma cajadada, e o dono do estabelecimento de comes e bebes também agradece, porque também deve precisar de ganhar a vida, e refeiçoar por meios virtuais e à distância é uma coisa difícil. Ou, então, o feirante vai a uma cidade grande, de preferência uma modernaça e fina, cheia de ciclovias, espaços ajardinados e quiosques bonitos, numa zona cheia de escritórios e serviços, e espera pela hora de saída da rapaziada. A rapaziada – alguma dela depois de ter ocupado parte do dia nas redes e nos grupos virtuais a vociferar contra as condições pouco sãs no escritório (“uma irresponsabilidade, nesta altura de pandemia”) – junta-se nos quiosques que é um regalo, às vezes aquilo é às dezenas, tudo a arejar, a conviver e a molhar o bico (e está bem, é um direito fundamental, acho eu, desde que não seja em feiras e mercados, claro). E, senhor feirante, mexa-se por ali, chegue-se aos quiosques e vai ver que sempre vende qualquer coisa. Mas não fiquemos por aqui, ousemos. Pegue o feirante em 21 clientes e organize uma futebolada, dez e ele para um lado, 11 para o outro. Aliás, mais do que 21, porque há lugar para treinador, massagista e outros, para já não falar em substitutos e suplentes. Jogam, convivem e comerciam.

E não apanham o vírus, está bom de ver, porque não é uma feira nem um mercado. Ideias não faltam. Só mais uma, para fechar (por ora), em semana de mais uma mão-cheia de idas mediáticas a tribunal: o feirante pega num microfone, posta-se à porta num desses processos e, quando sai ou entra alguém e se põe tudo ao monte, ao empurrão e ao rebolão, é capaz de vender alguma coisa. Bem sei que não é tão importante como a liberdade de informação, mas vai ver que sempre se desenrasca e vende um atoalhado, uns ténis marados, uma frutinha, um pãozito ou dois, ou quem sabe algumas sãs ervas do campo, daquelas que põem tempero e, também, juízo nas gentes. E, se não conseguir, olhe, venda a banha da cobra. E espere pelo próximo dia de homenagem e luto pelas vítimas de qualquer coisa. Quando souber, logo lhe digo o calendário – que, aliás, deve ser farto.

IN "i" - 06/11/20

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