14/11/2020

RICARDO ARAÚJO PEREIRA

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Estado de emergenciazinha

O Governo optou por uma solução híbrida que nem sufoca por completo nem deixa propriamente respirar. Parece-me evidente – e estranho que nenhum comentador o tenha ainda notado – que estamos perante um caso de asfixiofilia política

O País enfrenta, ao que dizem, uma escolha difícil: morrer da doença, por não confinar, ou morrer do confinamento, por parar a economia. Pessoalmente, uma vez que as opções são essas, estou a ponderar seriamente optar pelo bagaço. Creio que, nos tempos modernos, as pessoas rejeitaram o bagaço como solução, alegando que não resolve nada e que até agrava os problemas. São excelentes e verdadeiros argumentos – e, no entanto, mesmo quem os expenda deixa de considerá-los válidos se beber dois bons copos de bagaço. Tal é a força da contra-argumentação do bagaço que debate silenciosa mas eficazmente. O bagaço faz mais do que induzir aquela desinibição social que leva as pessoas a dançarem sozinhas e a chorarem por causa de coisas antigas. Fornece também uma espécie de torpor que é o anestésico da vida. Parece inventado de propósito para ocasiões como esta. Todavia, uma vez que a legislação é omissa quanto à hipótese da prescrição de bagaço para a população, o Governo teve outra ideia.

Em vez de fechar tudo, como em Março, ou de manter tudo aberto, como até aqui, o Governo optou por uma solução híbrida que nem sufoca por completo nem deixa propriamente respirar. Parece-me evidente – e estranho que nenhum comentador o tenha ainda notado – que estamos perante um caso de asfixiofilia política. Trata-se de aplicar ao País a prática conhecida como asfixia auto-erótica. Com franqueza, não sei o que hei-de pensar do assunto. Por um lado, tenho ouvido grandes louvores; por outro, não esqueço que foi a actividade que matou o actor David Carradine. O segredo, ao que me dizem, está em alternar os momentos de sufoco com as alturas em que se respira apenas o suficiente. Nessa medida, o Governo parece estar a seguir as instruções, por exemplo, quanto aos feirantes. Primeiro sufocou, proibindo as feiras e os mercados; logo a seguir, deixou respirar, permitindo que se realizassem. Não me pareceu que os feirantes tivessem atingido aqueles momentos de êxtase que os defensores da prática anunciam com tanto entusiasmo. Mas parece óbvio que esta ordem para fechar, seguida imediatamente da ordem para abrir, revela que os responsáveis políticos estão, de facto, a praticar asfixia auto-erótica. Ou isso ou beberam bagaço.

 IN "VISÃO" 10/11/20

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